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Cultura
Por: José Salucci – Jornalista
O som do berimbau que já ecoou em um terreiro de terra batida, e em uma roda de rua sob o olhar desconfiado da lei, preencheu o ar na noite de segunda-feira (29), no pátio da Escola América, em Mata da Praia, Vitória. Ali, pequenos corpos, moviam-se com uma pureza desconcertante dando início a semana do “Festival de Capoeira Beribazu ES”, que segue suas apresentações até sábado (04), em outros ‘terreiros’.
Na noite dessa segunda-feira, eram doze crianças, de 3 a 10 anos, protagonistas de um ritual de passagem: o batizado, o momento sagrado em que o capoeirista recebe sua primeira corda, e a graduação, que é a troca de corda para um grau superior.

Na plateia, o reflexo daquela cena era uma sinfonia de flashes de celulares e sorrisos rasgados. Pais, mães e avós testemunhavam mais do que uma simples apresentação extracurricular. Eles viam a história se desdobrar, viva, pulsante, na agilidade de seus filhos. Crianças que, com sua inocência, quebravam paradigmas ao mergulharem em um universo afro-brasileiro, outrora relegado às margens, agora celebrado em um espaço de prestígio educacional.
Era impossível não sentir a força daquele momento. A capoeira, que nasceu como uma forma de sobrevivência, um grito do corpo contra a opressão da escravidão, estava ali, desarmada de sua necessidade de defesa, vestida de festa. A mesma ginga que um dia foi artimanha para driblar o feitor, a mesma “malandragem” que aprendeu a se disfarçar de dança para não ser aniquilada, agora se revelava em sua forma mais lúdica, ensinada e aprendida como uma herança preciosa.

As correntes invisíveis da lei
Houve um tempo, não tão distante, em que essa cena seria um ato de transgressão. Um crime. Após a abolição da escravatura, a liberdade no papel não se traduziu em liberdade nas ruas. O Código Penal de 1890 foi claro em seu artigo 402: “Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem” era passível de dois a seis meses de prisão. A arte da libertação se tornara ofício de “vadios e capoeiras”. Antes disso, a punição era ainda mais brutal: até 300 açoites e o calabouço.
A perseguição durou até 1937, quando o presidente Getúlio Vargas, em um movimento político astuto, legalizou sua prática. Mas as cicatrizes permaneceram. Por décadas, a capoeira resistiu nos morros, nos centros comunitários, nos cantos onde a cultura popular teima em não morrer. Hoje, ao ser reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial pelo IPHAN (2008) e pela UNESCO (2014), ela vive seu apogeu. E a noite na Escola América era a prova mais poética dessa vitória.

O mestre e a semente do futuro
No centro da roda, orquestrando a energia infantil com um olhar que mistura firmeza e afeto, está o Contramestre Fábio Mongola, que na próxima sexta-feira (03) receberá a corda de mestre de capoeira em sua formatura no Centro de Educação Física e Desportos, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). A programação faz parte das atividades do “Festival de Capoeira Beribazu ES”.
Seguindo os relatos da noite romanceada pela capoeira, há seis anos Mongola planta a semente da cultura popular brasileira no solo da Escola América. Vindo de uma trajetória como educador social em projetos nas comunidades de Vitória, como São Benedito e Bela Vista, ele enxerga além do movimento. “Estar aqui, vindo da realidade de onde eu vim, é diferente, é um ganho muito grande para a capoeira”, reflete, creditando a oportunidade ao seu profissionalismo, que o trouxe à escola por indicação de uma família que conhecia seu trabalho.
Seu método se adapta à idade. Com os pequenos, de 2 a 5 anos, a capoeira é uma grande brincadeira. “Eu trabalho uma metodologia mais voltada para o lúdico”, explica. Já com os maiores, a técnica começa a ser lapidada. “A gente trabalha a posição correta do braço na ginga, a ponta do pé atrás, a questão do reflexo. Quando ele vê o movimento, ele sabe que tem que esquivar.”
Esse olhar atento permite que ele potencialize talentos individuais. Ele aponta para o Heitor, que executa uma “queda de rins”, um movimento complexo, com uma naturalidade impressionante. “A coordenação motora dele é um pouco mais avançada, então a gente aproveita”, diz o Contramestre, que também destaca a habilidade de Guilherme, outro aluno, em movimentos de força e equilíbrio.

Da técnica para a teoria, a história, filosofia e arte da capoeira, ele conta, são transmitidas no cantar das músicas. “Às vezes pego determinada música, paro e explico para eles: “Ó, esse personagem foi uma pessoa muito importante na história da capoeira”, revela.
Para Mongola, a maior transformação não está na perfeição de um golpe, mas na formação do caráter. “É muito bacana ser abordado pela equipe pedagógica e eles elogiarem as crianças da capoeira, falando que o comportamento melhorou, o desempenho nos estudos. Isso é gratificante.”
Para além dos muros da escola
A presença da capoeira na Escola América é parte de uma visão mais ampla, o projeto “Vitória Flyers”, idealizado por Maxsiellen Agamenon, 37 anos, profissional de educação física e professora na instituição. “A gente tem um projeto de atividades extracurriculares em que trazemos diversas modalidades para dentro das escolas, para que as crianças participem após o horário de aula, sem que os pais precisem se deslocar”, detalha Maxsiellen, explicando que a iniciativa, que inclui de futsal a pintura em tela, foi uma criação sua que cresceu e hoje atende a outras instituições.
Ela, que também utiliza a capoeira nas aulas curriculares de educação física, vê na arte um valor que transcende o desenvolvimento motor. “Acreditamos que a capoeira traz muitos benefícios, mas principalmente a história e a cultura que ela carrega”, afirma. “É muito importante que as crianças e os pais conheçam a história e tudo que eles passaram para chegar até aqui.” É a educação quebrando a última barreira: a do preconceito velado, ao ensinar o respeito pela raiz de uma cultura que é identidade própria do Brasil.
A celebração do encontro
Observando a roda de uma perspectiva mais ampla, o Mestre Fábio Loureiro, uma das referências do Grupo Beribazu no estado, e que exerce mestria sobre o Contramestre Mongola, aponta uma direção que oferece uma leitura sensível do que aconteceu ali na quadra da escola. Para ele, o evento é uma celebração que começa na criança e contagia toda a família. “A capoeira aproxima as pessoas. Os pais ficam sensibilizados pela prática da criança, pelo domínio corporal, pela ritualística, pela música”, analisa.

A avaliação do sucesso da noite, para o Mestre, não está em planilhas, mas nos rostos ao redor. “A expressão que a família passa durante o evento, para mim, é o máximo. Ver a felicidade da criança expressada na felicidade da família. A criança joga, canta, e a família reflete com sorriso, com alegria. Essa confraternização é a avaliação como um instrumento de aprendizagem coletiva.”
O “Festival de Capoeira do Beribazu”, que se estenderá pela semana, não poderia ter começado de forma mais exponencial, verdadeira e inclusiva. “É começar com o saber mais potente que a gente tem na humanidade, que é o saber da infância”, diz Mestre Fábio. A sinceridade desse saber se materializou em um momento que o marcou profundamente. Ao entregar a corda ao pequeno Bernardo, o Mestre lhe desejou que nunca parasse de fazer capoeira. A resposta do menino, pura e definitiva, ecoou como o toque de um gunga: “Até quando eu morrer, eu vou continuar na capoeira.”
Naquela noite, na Escola América, a capoeira não era apenas esporte, dança ou luta. Era uma promessa. A promessa de que a ginga, que um dia foi necessária para sobreviver, hoje é o caminho para viver com mais alegria, comportamento social e cultural desejável e, sobretudo, com mais alma. Corpos franzinos e ingênuos experimentando a magia da capoeira, onde essa arte os tornou em almas fortes e vibrantes, sorrisos pujantes, guiados pela liberdade do som de um berimbau.

Serviço – “Festival de Capoeira Beribazu ES”
- 02|OUT Quinta-feira – 18h – Batismo e Graduação Infantil de Capoeira – UFES e ESB
Local: Sala Capoeira CEFD-UFES - 03|OUT Sexta-feira – 19:30h – Formatura de Mestre de Capoeira – Contramestre Fabio Conceição de Paula – Fabio Mongola
- 04|OUT Sábado – 8h – Cursos | Batismo e Graduações UFES – ESB – Núcleo Mestra Sabrina Abade | Roda dos 45 anos de Capoeira do Mestre Fabio – 8h – Cursos de Capoeira
9h – Batismo e graduações
10:30h – Roda de capoeira 45 anos mestre Fabio
Local: Sala Capoeira CEFD-UFES



