O mestre com a visão de um falcão

Entrevista
Por: José Salucci – Jornalista

O “Festival de Capoeira Beribazu ES” mobilizou a comunidade capoeirista com oficinas, rodas e celebrações, em especial a formatura do então Contramestre Fábio Conceição de Paula, o querido Fábio Mongola, que se tornou mestre na noite do dia três de outubro. A celebração aconteceu no Centro de Educação Física e Desportos (CEFD), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Na ocasião, esteve presente no evento José Luiz Cirqueira Falcão, o Mestre Falcão, 65 anos de idade, o mestre mais antigo do Grupo de Capoeira Beribazu, em atividade.

Merkato entrevistou o Mestre Falcão, que carrega no corpo e na alma cinco décadas de prática capoeirística. Com a sabedoria de quem já levou a capoeira a mais de 30 países. O representante do Conselho de Mestres e Mestras do Beribazu, observou, participou, jogou, discursou e compartilhou suas vivências capoeirística durante o evento. Além de ter deixado um abraço fraterno para o Mestre Fábio Loureiro, que na ocasião do evento celebrou seus 45 anos de capoeira.

Confira a entrevista com a voz da experiência e a visão de um falcão!

1 – Mestre, seu apelido “Falcão” veio apenas do seu sobrenome ou há outra origem?

Foi um pouco por causa do nome de identidade, mas se fortaleceu no Exército. Meu nome de guerra era Falcão. Meu apelido anterior era “Charrete”, mas “Falcão” ficou mais forte e o pessoal terminou adotando esse apelido.

2 – O senhor é natural de Cristalândia, no Tocantins. Como foi a transição para Brasília aos 15 anos e o seu primeiro contato com a capoeira?

Cheguei em Brasília com 15 anos e já encontrei uma cidade muito desenvolvida. Eu sou da idade de Brasília. Em 1975, três anos após a fundação do grupo Beribazu, entrei para a capoeira com o Mestre Zulu, que é meu mestre até hoje. Já são 50 anos de prática.

3 – O senhor menciona que a capoeira foi um “divisor de águas”. De que forma ela mudou sua vida e seu processo de autoconhecimento?

Realmente, foi um divisor de águas. Identifiquei-me muito com a capoeira, porque tinha a ver com o que eu fazia no interior: andar no mato, correr, brincar. A capoeira foi me mostrando muitas formas de acessar o exterior, assim como me conhecer também. É uma viagem para fora e para dentro. Conhecer minha mente, me autoconhecer, conhecer os lados obscuros do ser humano.

“A capoeira é a principal difusora da língua portuguesa no mundo”, argumenta Me. Falcão. (Foto: Jornal Merkato). Clique na imagem!

4 – Como foi a experiência de praticar capoeira no tempo em que o senhor serviu o Exército durante o regime militar (1978-79)?

Eu servi à época da ditadura. Em 79, eles botavam na nossa cabeça que os comunistas eram terroristas, e a gente até acreditava. Mas, o Exército foi um momento também de aprendizado, ajudou na autodisciplina. Eu nunca parei com a capoeira. Saía do quartel, ia para a faculdade, mas antes de entrar na faculdade à noite, passava pela academia e dava uma treinada com o Mestre Zulu.

5 – A capoeira moldou sua carreira acadêmica, levando-o ao mestrado e doutorado. Como essa prática influenciou sua trajetória profissional?

A capoeira alterou minha vida. Terminei me tornando professor, fiz mestrado em Educação Física, sobre capoeira na escola e, o doutorado em Educação, a primeira tese sobre capoeira na UFBA. Sou professor universitário, atualmente visitante na UFRN, após me aposentar pela UFG e passar pela UFSC. Já morei em todas as regiões do Brasil por causa da capoeira. Ela abriu meus olhos, o meu mundo.

6 – O senhor viajou para mais de 30 países pela capoeira. Como a cultura brasileira é recebida no exterior através dela?

A capoeira me levou para mais de 30 países, de culturas distintas como Indonésia e Austrália. Hoje, a capoeira está muito internacionalizada. Em qualquer lugar do mundo, eles cantam em português. Isso é maravilhoso. A capoeira é a principal difusora da língua portuguesa no mundo. Muitas escolas de português são abertas em decorrência dos trabalhos de capoeira.

No discurso da formatura do Me. Mongola, no centro da quadra, Me. Falcão destacou três palavras que acompanham a trajetória de todo ser humano em formação: o conhecimento, a experiência e a sabedoria. (Foto: Jornal Merkato). Clique na imagem!

7 – Notou diferenças na prática? Por exemplo, entre a capoeira na Itália e na Polônia?

Sim. Pelo fato de a Itália ter uma cultura latina parecida com a brasileira, considero que a capoeira lá está muito bem desenvolvida. Eles cultivam a arte da malandragem, da brincadeira, do jogo, de forma mais cultural, mais brincante. Diferente de países como a Alemanha ou a Polônia, que já levam mais para o lado da luta, do combate. A Itália tem essa coisa da dramaticidade, da teatralidade. Assisti a um dos mais belos espetáculos de capoeira na Itália.

8 – Na sua visão de mestre e pesquisador, qual é o maior legado da capoeira para a humanidade?

Primeiro, é como se fosse uma “mega terapia” para os praticantes; faz um bem danado para o espírito. Ela mistura dimensões fundamentais: o jogo, o canto, a luta, a brincadeira e a dança, tudo na mesma prática. Ela ajuda as pessoas a aprenderem a partir de uma visão de comunidade, de espírito coletivo. Ela só funciona no coletivo.

9 – O senhor foi pioneiro na inserção da capoeira na escola pública no DF. O que significa o conceito de “capoeirização da escola”?

O DF e a Bahia foram os pioneiros em inserir capoeira na escola. O termo “capoeirização” significa que a capoeira tem uma lógica própria – de ritmos, cantos, instrumentos – oriunda da cultura popular. Ela não se acomoda muito bem na escola tradicional, que tem seus códigos, salas, conteúdos. Às vezes pode causar desconforto, barulho, preconceito. O que temos que fazer é a mediação.

Momento dos mestres jogarem em uma tradicional roda de capoeira – “Eu considero que o Me. Fábio tem um trabalho muito consistente. Ele é imprescindível para a capoeira”, opina Me. Falcão. (Foto: Jornal Merkato). Clique na imagem!

10 – Após 50 anos de prática, o que o senhor sente ao ver novas gerações de crianças sendo batizadas hoje?

Primeiro, acho muito interessante, porque é uma valorização de uma prática na qual eu me reconheço. Quanto mais gente valorizar a capoeira, para mim, melhor. A gente já passou por muito preconceito e discriminação. Ver o trabalho do Mestre Thiago, com a escola, faz um bem danado para aquelas crianças.

11 – Em seu discurso, no momento da formatura do Mestre Mongola, o senhor enfatizou três palavras que fazem parte da formação não só de um mestre (a) de capoeira, mas de todo o ser humano: conhecimento, experiência e sabedoria. Explique cada uma.

Nós temos o conhecimento, ele é adquirido durante a formação, através de livros, manuais, propostas, métodos. Mas o conhecimento não basta, é fundamental que o mestre também tenha experiência. Ela é adiquirida em muitas ações, em contato com a comunidade a partir da convivência e da vivência com àqueles que escolhem o mestre como seu professor. Mas apenas o conhecimento e, não tendo a experiência, não basta para um mestre de capoeira. É fundamental que o mestre tenha uma sabedoria. A sabedoria tem muito a ver com sabor, tem a ver com acúmulo, com discernimento. E, é isso que a gente espera e almeja de um mestre de capoeira. A sabedoria é produto do cohecimento e da experiência acumulados, mas isso não acontece de uma forma aleatória, é preciso que isso aconteça dentro das comunidadades, do grupo. É impossível formar um mestre a partir da sua própria vontade. Os seus discípulos, pares, coordenadores também acompanham esse movimento.

12 – Para concluir a entrevista, o evento “Festival de Capoeira Beribazu ES”, além de celebrar o batizado e a formatura, também comemorou os 45 anos de capoeira do Mestre Fábio Loureiro, deixa seu último recado.

Minha amizade com o Me. Fábio é terapêutica. Mestre Fábio, para mim, é uma referência importante no estado do Espírito Santo. Eu vejo nele uma liderança democrática, uma liderança imprescindível para a continuidade da manisfestação da capoeira, não só na cidade de Vitória, mas no estado todo do Espírito Santo, porque ele se tornou uma referência mesmo, também fora do Beribazu.

Eu acompanho o trabalho dele há muitos anos, pelo fato de ser amigo, às vezes, posso estar puxando pro lado dele, mas não é. Eu acompanho o trabalho dele. E, inclusive, participei da banca de doutorado dele. É… Considero que ele tem um trabalho muito consistente, e não será qualquer onda que vai derrubar. O trabalho dele, realmente, é muito sólido, consolidado. Ele é imprescindível.

 

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