Entrevista
Por: José Salucci – Jornalista
Entre os dias 20 e 25 de novembro, no Cine Metrópolis – UFES – a capital capixaba mergulhará na diversidade da língua portuguesa em um diálogo transatlântico fundamental. A I Mostra Cine Luso Brasil aporta em Vitória não apenas como um evento de exibição cinematográfica, mas como um fórum de alta densidade intelectual sobre a lusofonia. Sob a temática “Lusofonia – Diásporas e Identidades”, o evento celebra o cinquentenário das independências dos países africanos de língua portuguesa, propondo uma hermenêutica visual sobre o exílio, a migração, o sincretismo e a resistência cultural. A entrada é franca.
A idealização e curadoria deste projeto audacioso recaem sobre Aline Yasmin. Capixaba radicada em Bruxelas, Aline é uma figura poliédrica: filósofa de formação, curadora, artista multidisciplinar, poeta e consultora de projetos internacionais. À frente da Associação Espírito Mundo, ela transcende as fronteiras geográficas para tecer redes de colaboração que conectam o Brasil, Portugal e o PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa).
Em parceria com o gestor cultural Ricardo Sá, que conferiu gestão local à visão de Aline, a mostra é um desdobramento amadurecido de cinco edições realizadas na Bélgica. O objetivo é claro: utilizar o audiovisual como ferramenta de questionamento histórico e “descolonização do pensamento”. Aline, que se autodefine como uma “ativista pelos direitos humanos e absorvedora de cultura”, traz para o Espírito Santo uma curadoria que desafia o senso comum e convida o público a reconhecer a potência artística de nações irmãs, frequentemente invisibilizadas por uma ótica eurocêntrica.
A seguir, apresentamos uma conversa franca e profunda com a curadora sobre a gênese deste projeto, o papel político do cinema e a necessidade urgente de um novo olhar sobre a nossa própria identidade.
1 – Aline, considerando que cinco edições deste projeto já ocorreram em Bruxelas, como surgiu o sentimento e a motivação para trazer esta iniciativa ao Brasil, especificamente para sua terra natal?
Eu sou capixaba, sou do Centro de Vitória. Comecei um intercâmbio internacional entre o Espírito Santo e a Europa em 2007 e 2008 (…), onde eu realizei uma série de atividades, intercâmbios, festivais em vários lugares da Europa: França, Inglaterra, Espanha, Itália, Portugal, etc.
Em 2015, decidi ficar definitivamente na Europa (…) O Espírito Mundo, que era um projeto de intercâmbio internacional, acabou se tornando uma associação fundada em Bruxelas, por mim e pelo Renzo Dalvi.
2 – Para o público que ainda não conhece, o que é, essencialmente, o Projeto Espírito Mundo?
Mais do que uma entidade jurídica, trata-se de um conceito de internacionalização da arte brasileira que evoluiu para abraçar a lusofonia global.
Ele era um projeto de internacionalização entre o Brasil e a Europa (…) quando cheguei em Bruxelas, decidi fundar a Associação Espírito Mundo. A ideia era usar esse ‘capital cultural’ e a minha rede com artistas do Brasil inteiro (…) Daí surgiu a ideia de estender não só ao Brasil, mas também desenvolver um projeto dos falantes de língua portuguesa. A ideia era levar, através de uma série de atividades, o conhecimento sobre a língua portuguesa, que é a quinta língua mais falada do mundo.
3 – Foi neste contexto de expansão da lusofonia que nasceu a ideia de um festival de cinema focado nestas narrativas?
O formato tradicional de “festival” não contemplava a profundidade dos debates necessários, optando-se pelo conceito de “Mostra” e encontro.
Surgiu, então, a ideia de desenvolver um festival de cinema da lusofonia em Bruxelas, o que é uma coisa inédita, mas imediatamente eu mudei o conceito. Falei: ‘Não é um festival que eu quero realizar’. O grande lance do Cine Luso era juntar pessoas. Nesse momento, entendi que era importante criar um projeto onde a gente pudesse dialogar. Não é um cinema tradicional. Ele é uma mostra onde o audiovisual é utilizado como uma ferramenta de discussão temática.
4 – Poderia detalhar o seu entendimento sobre a metodologia do projeto? Percebe-se que há um foco na imersão.
A proposta transcende a exibição, fomentando a criação conjunta e a residência artística como formas de integração profunda entre os participantes.
No processo de pré-produção, entendi que precisava integrar esse elemento. Então não era só projetar filme, não era só receber os realizadores (…), mas também produzir um conteúdo junto. A gente sempre teve a presença de pessoas de outros lugares lusófonos para produzir um filme numa residência artística. Acabou se tornando um projeto de profunda imersão entre os participantes.
5 – Para o público saber um pouco mais desse projeto, faça um retrospecto das cinco edições realizadas em Bruxelas e suas temáticas centrais.
As edições anteriores abordaram tópicos urgentes como o feminismo, a imigração global, o meio ambiente e as tensões políticas contemporâneas, consolidando a relevância da associação na Europa.
O primeiro ano definimos fazer um tema de mulheres e musas (…) A segunda edição trabalhamos a questão da imigração no conceito geral. O terceiro foi meio ambiente e o mundo ao redor (…) A quarta edição foi ‘Liberdade e Poder’, com o crescimento da extrema direita no mundo. E na quinta, em 2023, a ‘Invisibilidade Social: imigrantes sem papel’ – as mulheres na história, as pessoas com deficiência.

6 – Qual é a intenção estratégica ao transformar o Projeto Espírito Mundo e trazê-lo para o território nacional?
Eu destaco o ineditismo de congregar todos os países de língua portuguesa em um único evento no Brasil, diferentemente de mostras segmentadas.
Tive a intenção de transformar esse projeto num projeto itinerante. Saí de Bruxelas, não existe aqui, é inédito no Brasil. A Rede PALOP já tem essas redes de articulação, mas que agrega todos os países de língua portuguesa, é um formato inédito. Isso é muito interessante, porque ele sempre vem baseado também num tema.
7 – O tema deste ano possui um peso histórico significativo. Como surgiu a escolha de celebrar os 50 anos das independências?
A escolha temática é um ato de resgate histórico e político, aproveitando o marco temporal que foi pouco celebrado no Brasil.
A gente decidiu celebrar 50 anos da independência dos países africanos de língua portuguesa. Isto não foi celebrado no Brasil, a gente está no apagar das luzes desses 50 anos… Eu manifestei então para o Ricardo Sá a intenção de tornar esse projeto itinerante. E o Ricardo falou: ‘Aline, vamos participar do edital da Secult, quem sabe a gente não ganha’. E a gente ganhou.
8 – Recentemente, o cinema brasileiro ganhou destaque internacional com “Ainda Estou Aqui”. Como esse reconhecimento e o contexto político atual impactam e valorizam o seu trabalho?
O cinema é vital na formação da consciência crítica e no combate ao revisionismo histórico, especialmente após períodos de turbulência política no Brasil.
O audiovisual é uma ferramenta extremamente séria na formação de consciência, de despertar consciências (…) O fato de a gente viver uma situação quase mundial polarizada, e da negação, por exemplo, de uma ditadura no Brasil… Eu acho que o fato de a gente ter conseguido posicionar mundialmente o que aconteceu nessa ditadura é importante… Pelo esclarecimento necessário, porque foi um filme que não veio com uma carga estereotipada.
9 – Sobre o PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e a questão da imigração, como você avalia a riqueza cultural e a necessidade de descolonização do olhar?
Essa rede de audiovisual dos PALOPs é de uma riqueza, vocês não têm noção (…) eles têm uma super profissionalização da distribuição e das coproduções. A Katya, que está vindo para cá, vai dar uma formação sobre construção de cinema através de novas narrativas descoloniais. O pensamento precisa ser descolonizado (…) tem que acabar com essa falta de autoestima que a gente tem enquanto potência. O mundo é feito de migrações. Nós somos seres migrantes por natureza.

10 – “Diáspora e Identidade”. Por que a escolha específica destes eixos temáticos para a mostra?
Os temas refletem a manutenção da identidade cultural mesmo em situações de deslocamento, funcionando como atos de resistência.
As diásporas carregam as suas identidades… são formas de resistência. Qual é o eixo? Identidade cultural e resistência. Por exemplo, temos aqui ‘Memória e Exílio’. O filme ‘De Armas e Bagagens’ fala sobre 300.000 portugueses que abandonaram Angola depois da revolução.
11 – Sendo esta a primeira edição no Brasil após cinco na Europa, como você responde à falácia de que “o Brasil não tem cinema” ou que estamos culturalmente atrasados?
Classifico tal pensamento como fruto de desinformação e colonização cultural, defendo a potência da produção nacional.
O Brasil é um fenômeno de produção. Dizer que não tem filme bom no Brasil é falta de informação. É desinformação. É colonização. O brasileiro é uma colônia dos Estados Unidos (…) O brasileiro precisa se descolonizar dos Estados Unidos e criar um pouco mais de amor próprio pelo que se produz em arte e cultura no Brasil, que é uma riqueza.
12 – O que você espera deste evento para o público capixaba?
O desejo é despertar a curiosidade e expandir os horizontes culturais da população local.
Eu espero que as pessoas venham. Espero que participem dos debates, que sejam curiosas. Espero que as pessoas não percam a oportunidade de ampliar o olhar delas para o que existe para além do Brasil (…) às vezes tenho a sensação de que o capixaba tem medo dessa curiosidade, de ampliar o olhar.
13 – O que esta primeira mostra pode proporcionar concretamente aos participantes?
Conhecimento. O evento promete ser um vetor de conhecimento acadêmico e cinematográfico de alta qualidade. É uma mostra que traz filmes importantes e muitos pesquisadores que vão participar dos debates. A gente tem uma parceria com a universidade, com pesquisadores africanos também, que vão vir.

14 – O que este trabalho de audiovisual estabelece como legado para a cultura capixaba?
Um marco histórico nas relações internacionais do estado com a lusofonia. Ele já é um marco no diálogo com a lusofonia, que nunca aconteceu. Esse projeto é um marco. É uma perspectiva inédita e é um eixo prioritário do Ministério da Cultura.
15 – Para finalizar, que recado você deixa para os espectros políticos de esquerda e direita sobre o seu trabalho, considerando que ele trata da história do Brasil e pode ser alvo de julgamentos precipitados?
Vou fazer um apelo ao humanismo, à empatia e à superação da ignorância e do ódio, independentemente de rótulos ideológicos (…) Quando você tem pesquisadores ou pessoas que viveram a guerra, que fugiram da guerra… Os seus depoimentos… Isso é muito mais do que uma opinião. Isso é uma história de vida.
A ignorância está prevalecendo, infelizmente. Gostaria que as pessoas tivessem mais consciência crítica. Esse projeto não é nem de direita, nem de esquerda. Ele poderia ser de esquerda, porque me reconheço muito mais nas pautas humanistas (…) O meu trabalho não é de doutrinação, ele é de esclarecimento. Se a gente não tem consciência dos nossos privilégios, nunca teremos uma relação empática (…) A mensagem que eu dou para esquerda e para direita: Mais amor, por favor. Essa é minha mensagem.





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