Vitória recebe Katya Aragão, a voz de São Tomé e Príncipe, na I Mostra Cine Luso Brasil

Katya Aragão. (Foto: Renzo Dalvi - Espírito Mundo)
Entrevista
Por: José Salucci – Jornalista

Merkato entrevistou Katya Aragão, cineasta, produtora, roteirista e empreendedora. Natural de São Tomé e Príncipe, África, ela é fundadora da produtora Tela Digital e cofundadora e representante em seu país da Rede Audiovisual e Cinema do PALOP + TL. Katya é uma figura central na luta pelo desenvolvimento do cinema lusófono, utilizando a arte como ferramenta de resistência, memória e transformação social. A entrevista foi realizada durante a I Mostra Cine Luso Brasil, que acontece em Vitória, Espírito Santo, Brasil.

I Mostra acontece no Cine Metrópolis – UFES – teve início no dia 20, e tem pela frente mais dois dias de evento: segunda-feira (24) e terça-feira (25).  Merkato está acompanhando essa imersão cinematográfica e debates que lançam luzes em temas ainda alijados pela sociedade elitizada.

A capital capixaba mergulha na diversidade da língua portuguesa em um diálogo transatlântico fundamental. Sob a temática “Lusofonia – Diásporas e Identidades”, o evento celebra/debate/refleti o cinquentenário das independências dos países africanos de língua portuguesa, propondo uma hermenêutica visual sobre o exílio, a migração, o sincretismo e a resistência cultural.

Esta entrevista é um convite para mergulhar nas histórias que Katya Aragão se empenha em contar: as narrativas femininas, os tabus sociais (como o retratado em Mina Kiá), o papel fundamental da arte como linguagem de resistência e memória, além dos desafios enfrentados pelo PALOP – Países da África de Língua Oficial Portuguesa –.

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1 – Você nasceu em São Tomé e Príncipe e teve uma infância marcada por mudanças entre Angola, Portugal e sua ilha natal. Como essa vivência transnacional moldou a pessoa e a artista que você é hoje?

Nasci em São Tomé e Príncipe, mas saí com quatro anos de idade da ilha, com minha mãe. Mudamos para Luanda, Angola, e depois, aos quatro anos, fomos para Portugal, onde passei parte da infância. Mais tarde, regressamos a São Tomé, onde considero que cresci, embora mantendo vínculos com Portugal – cheguei a fazer o sexto ano lá. A pessoa que sou hoje, é um bocado, um apanhado dessas minhas vivências nesses países, o resultado dessas vivências, dessa possibilidade de viajar e conhecer outras realidades nos países onde vivi.

2 – De que forma essa amplitude cultural influenciou a sua formação profissional?

Tudo isso influenciou a minha visão como cineasta e criadora. Embora as minhas histórias passarem todas em São Tomé, possuo uma visão mais ampla das questões. Fiz Ciências da Comunicação e Cultura, em Portugal. Ao regressar, trabalhei primeiramente com jornalismo, sobretudo na televisão. Em 2014/2015, fiz a transição para o setor privado e fundei minha própria produtora audiovisual: a Tela Digital. Hoje, sou produtora, realizadora, roteirista e empreendedora.

A idealização e curadoria desse projeto recaem sobre Aline Yasmin, capixaba radicada em Bruxelas, Bélgica. (Foto: Renso Dalvi – Espírito Mundo)

3 – Fale um pouco sobre seu trabalho na Tela Digital e, principalmente, sobre o São Tomé e Filme Lab.

Na Tela Digital, além dos trabalhos para clientes, desenvolvemos nossos próprios filmes autorais, tanto documentários quanto ficções. E temos o São Tomé e Filme Lab, um laboratório de cinema que é um programa sem fins lucrativos. É o nosso contributo essencial para a criação de um ecossistema de cinema em São Tomé e Príncipe.

O laboratório, que inclui uma residência artística, começou em 2021 focado apenas em são-tomenses. Este ano, na primeira edição aberta, expandimos para incluir todos os países que falam a língua portuguesa, a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

4 – Você é cofundadora e representa a Rede Audiovisual e Cinema do PALOP + TL em São Tomé e Príncipe. Qual é o papel desta rede no panorama do cinema lusófono e qual a importância desse trabalho em conjunto?

Eu represento a rede no meu país, mais do que isso, eu faço parte dos fundadores. Eu sou uma cofundadora, portanto, é um grupo de realizadores que têm produtoras ou festivais de cinema que resolveram reunir-se para exatamente ajudar a criar esse ecossistema para o cinema nos nossos países. Porque os nossos países, não é como o Brasil ou Portugal, que o cinema tá bem mais desenvolvido, que existem editais que permitem os artistas criarem.

Nós estamos há anos luz disso, e por isso nós estamos a lutar por isso, e o caminho foi juntar-nos para estarmos mais fortes.

5 – Qual o significado de estar, hoje, aqui na I Mostra Cine Luso Brasil, em Vitória, representando seu país e continente, e promovendo esse diálogo transcultural entre os PALOP, Portugal e o Brasil? Quais reflexões este encontro suscitou, especialmente no contexto dos 50 anos de independência dos PALOP?

É muito importante constatar que, apesar da distância geográfica, partilhamos os mesmos desafios e narrativas parecidas. Esta primeira mostra do Cine Luso, que começou no dia 20 de novembro – Dia da Consciência Negra e feriado no Brasil, o que me impressionou pela importância dada à data – é muito simbólica.

É sempre bom ver filmes criados por africanos ou filmados nos nossos países a contar as nossas histórias. Tenho gostado muito da reação e das conversas que surgem após as exibições, pois elas demonstram que existe uma ponte muito maior do que apenas a língua portuguesa. Há uma comunhão de experiências e vivências. Como o tema da mostra aborda os 50 anos de independência dos PALOP, discutimos muito a questão da liberdade: será que somos de fato independentes? A dependência econômica da ajuda externa ainda é uma realidade que nos força a pensar sobre até que ponto somos livres.

6 – Qual é a sua principal motivação, objetivo e missão no trabalho que você realiza? E o que significa a liberdade dentro desse contexto, considerando as questões de dependência econômica e a marginalização do conhecimento africano?

Minha motivação é contar histórias, mas, especificamente, contar as nossas histórias. Eu cresci lendo livros que retratavam narrativas ocidentais, e isso se refletia na minha escrita inicial. Tive, então, um processo de conscientização: essas não são as nossas histórias. Meu trabalho está no contexto de mudar a narrativa, de sermos nós próprios a contarmos nossas histórias, com o nosso ângulo de visão. Gosto de abordar temas que retratam as mulheres, claro, por ser uma mulher africana, e os desafios que vivemos no nosso dia a dia. Isso pode ser feito em linguagem documental ou ficção, mas o mais importante, para mim, é mesmo contar a história e trazer certos temas a debate, para trazer para a conversa, porque nós temos uma série de tabus.

[…] O nosso único problema são os políticos […] (Foto: Renzo Dalvi – Espírito Mundo).

7 – É nesse contexto que está inserido o abuso velado em nome da educação? Pode citar esse exemplo de história que conseguiu trazer ao debate?

Meu primeiro curta-metragem falava sobre o “Mina Kiá”, um fenômeno social em São Tomé e Príncipe: meninas e meninos, entre 10 e 13 anos, são acolhidos por famílias mais abastadas com o objetivo de ajudar em sua educação, ir à escola, em troca de trabalhos domésticos. A criança acaba por se tornar uma menina de casa, uma empregada, e fica em situação de grande vulnerabilidade. Embora haja casos de sucesso, infelizmente, há muitos casos de abuso – sexual, psicológico, discriminação, exclusão escolar ou gravidez precoce. Isso reflete muito o papel da mulher na sociedade, a quem muitas vezes é negado o investimento nos seus próprios sonhos.

8 – Sendo uma pessoa envolvida em tantos projetos, como você define sua personalidade em relação ao seu trabalho na Rede Audiovisual e Cinema do PALOP + TL?

Minha tendência é: se gosto de algo, quero experimentar e, se gosto, quero continuar. Não é um sacrifício, é uma necessidade. Aceitei o desafio de ser representante da Rede em São Tomé e Príncipe, além de ter estado na fundação, porque é realmente necessário. Não quero que daqui a 20 anos um cineasta emergente tenha as dificuldades que enfrento hoje. Estamos a trilhar o caminho para criar as condições para que os outros consigam fazer mais e melhor do que nós.

9 – Em relação aos 50 anos de independência dos países africanos. São Tomé e Príncipe se deu em 12 de julho de 1975. O que você gostaria de pautar sobre esse assunto?

Uma das coisas que me perguntaram no debate foi sobre o meu sentimento em relação aos 50 anos da independência, se era motivo de celebração. Minha resposta é: motivo de muita tristeza.

Não a independência em si, mas o que nós estamos a fazer com ela, ou o que nós não estamos a fazer com ela. Porque eu vejo que, em 50 anos nós não estamos onde já poderíamos estar. Nos falta muita infraestrutura básica: estradas, hospitais, eletricidade 24 horas por dia, a nível do país não tem.

Nós tivemos dois anos que a coisa esteve bem, em que tivemos 24h de eletricidade, mas a crise retomou. Então, eu não sinto que haja motivos, de fato, para festejar, para celebrar. Porque nós temos um problema: somos o nosso próprio inimigo. Estamos mais interessados em estar no poder para encher os bolsos do que desenvolver o país, desenvolver o coletivo.

Me deixe muito triste… Estamos a falar de questões graves. Se tu precisas de diálise, e teres que ir para outro país para conseguir fazer diálise, ou seja, és obrigada a viver fora do país que tens que fazer diálise. O que acontece é que, muitos são obrigados a viver em Portugal. Em Portugal, normalmente, nós temos um acordo de cooperação nesse aspecto.

10 – Você pode compartilhar um exemplo pessoal que ilustre essa dependência na saúde e a quebra da rotina que ela impõe?

Em 2017, após rodar meu curta-metragem, notei uma diferença no meu peito. Fui ao médico e, embora não tenham dito claramente que era cancro, a recomendação foi: “Se puder, saia o quanto antes”, pois não temos oncologia em São Tomé e Príncipe. Tive que ir para Portugal, o que pude fazer por ter posses. A maioria das pessoas não tem esse acesso. Morei em Lisboa por dois anos para cuidar do meu cancro. Quando se tem um país independente, mas não se consegue garantir sequer o tratamento de saúde básico, forçando a quebrar a rotina e mudar de país, que independência é essa? A dependência da ajuda externa persiste, e a questão é: para onde vai esse dinheiro todo?

11 – Aqui no Brasil, temos uma metáfora assim: um copo com água pela metade, significa duas visões: a primeira, o copo está meio vazio, a outra, o copo está meio cheio. Qual é a parte “meio cheio” em São Tomé e Príncipe? Qual é o ponto relevante e positivo a ser destacado nesses 50 anos de independência?

Gosto muito de viver na ilha pela proximidade das coisas e das pessoas; em cinco minutos, estamos num sítio ou no outro. Não temos a correria da vida europeia; podemos ir almoçar em casa, com a família. O ritmo é outro. Temos a filosofia de vida do “leve leve”: fazer devagar, mas bem feito, sem estresse. Se não conseguires hoje, relaxa, que amanhã vais conseguir. Além disso, temos o mar, a paisagem, um destino turístico fantástico. As nossas duas principais ilhas são consideradas uma Reserva Mundial da Biosfera da UNESCO, o que prova que estamos no caminho certo para equilibrar desenvolvimento e sustentabilidade.

O turismo, a par da agricultura (com cacau biológico, café, baunilha), tem sido nossa força motora. Estamos abertos ao turismo – não é necessário visto para entrar no nosso país por 15 dias. E acima de tudo, o nosso povo é muito simpático e afável. O nosso único problema são os políticos.

Todo jornalista procura histórias inspiradoras, e dessa vez, a “I Mostra Cine Luso Brasil” e a cineasta Kátya Aragão proporcionaram-me um marco para minha carreira profissional. (Foto: Renzo Dalvi – Espírito Mundo)

12 – O vídeo-arte “Mulheres e Musas” foi exibido na Mostra Cine Luso Brasil. Fale sobre sua participação e o trabalho realizado.

Esse vídeo-arte é um produto de uma residência artística. Minha relação com o Cine Luso e a sessão do Espírito Mundo começou em 2017, quando participei da primeira residência artística deles e do festival de cinema, com meu curta-metragem Mina Kiá. Durante a residência, produzimos em conjunto o Mulheres e Musas. Cada uma deu a sua contribuição, falando das nossas vivências e experiências enquanto mulheres imigrantes. Foi muito interessante essa troca, e criaram-se relações que se mantêm até hoje.

13 – Qual é, para você, a maior dificuldade de ser uma mulher imigrante, mesmo tendo dupla nacionalidade?

Eu acho que a maior dificuldade é mesmo a saudade. Por ter dupla nacionalidade, não experienciei tanto a condição de imigrante em Portugal, pois também sou portuguesa, mas a falta de São Tomé é constante. A dificuldade é mesmo a saudade.

Vídeo-arte “Mulheres e Musas”. (Foto: Joral Merkato)

14 – O que você mais aprecia em São Tomé e Príncipe?

A paz. É muito tranquilo. No meu dia a dia, gosto muito de paz para pensar, paz para me ouvir. Como escrevo, o silêncio, às vezes, é ouro. Sou introvertida e chega uma hora em que minha ‘bateria social’ acaba, e eu quero isolamento (risos).

15 – Gostaria de deixar alguma mensagem ou convite final?

Aproveito para convidar curiosos e o pessoal do audiovisual e cinema para participarem da oficina que vou orientar nos dias 24 e 25 de novembro, na UFES. Será um Laboratório Criativo Anticolonial, teórico e prático, no qual vamos estimular o pensamento sobre o audiovisual como linguagem de resistência, memória e futuro. Refletiremos sobre a diáspora afro-lusófona a partir de uma perspectiva pós-colonial, abordando a língua portuguesa como ferramenta de criação, conflito e, acima de tudo, identidade.

Mas eu queria deixar claro que é um momento de aprendizagem pra todos, não é como estar em uma sala de aula em que o professor está a falar e pronto. O objetivo é mesmo haver uma troca e uma criação em conjunto.

Ah, queria dizer que experimentei a moqueca capixaba, amei.

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