Coluna Criativos
Por: Samuel J. Messias – Consultor Empresarial
O desenvolvimento econômico da humanidade não pode ser compreendido apenas através de lentes puramente materiais ou técnicas. A experiência histórica demonstra que as sociedades mais prósperas e sustentáveis são aquelas que conseguiram integrar harmoniosamente a dimensão espiritual com a ação social efetiva. Este documento explora a importância fundamental do direcionamento divino – entendido como a orientação espiritual que transcende as limitações humanas – e da governança social – compreendida como a ação coordenada dos homens em sociedade, guiada por princípios espirituais – para o desenvolvimento econômico pleno e sustentável da humanidade.
A tese central aqui defendida é que o verdadeiro desenvolvimento econômico surge quando a sociedade reconhece sua dependência do direcionamento divino e organiza suas estruturas de governança social de modo a refletir os valores e princípios espirituais que promovem o bem comum. Sem essa integração, o desenvolvimento torna-se fragmentário, insustentável e frequentemente injusto.
O direcionamento divino como fundamento do desenvolvimento
A Necessidade da Orientação Transcendente
A história das civilizações revela que as sociedades humanas, quando deixadas exclusivamente aos seus próprios dispositivos, tendem a desenvolver sistemas que favorecem poucos em detrimento de muitos. A busca desenfreada pelo lucro, o individualismo exacerbado e a competição predatória são manifestações de uma humanidade desconectada de seu propósito transcendente. O direcionamento divino oferece uma bússola moral que orienta as decisões econômicas e sociais em direção ao bem comum.
Princípios do direcionamento divino na economia
O direcionamento divino na esfera econômica manifesta-se através de princípios fundamentais que transcendem as limitações da racionalidade puramente humana:
A Destinação Universal dos Bens: Conforme ensina a tradição cristã, Deus criou o mundo para o benefício de toda a humanidade. Como afirmou Santo Ambrósio: “A natureza produziu seus bens em profusão, oferecendo-os em comum a todos. Deus ordenou que tudo fosse produzido, gerado de maneira a servir de alimento comum a todos” [1]. Este princípio estabelece que nenhum sistema econômico pode ser considerado justo se impede o acesso dos mais necessitados aos recursos básicos para uma vida digna.
A Primazia da Pessoa sobre o Capital: O direcionamento divino coloca a pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, no centro de toda atividade econômica. Isso significa que a economia deve servir ao homem, e não o contrário. Os sistemas econômicos devem ser avaliados não apenas por sua eficiência na geração de riqueza, mas por sua capacidade de promover o desenvolvimento integral da pessoa humana.
A Responsabilidade Moral na Gestão dos Recursos: O direcionamento divino implica que os recursos naturais e econômicos são confiados à humanidade como uma administração responsável. Os gestores econômicos – sejam empresários, governantes ou trabalhadores – são chamados a exercer suas funções como uma vocação que serve ao bem comum.
A Sabedoria Divina na Organização Social
O direcionamento divino não se limita a princípios abstratos, mas oferece sabedoria prática para a organização da vida social e econômica. A tradição bíblica, por exemplo, apresenta instituições como o ano sabático e o jubileu, que visavam prevenir a concentração excessiva de riqueza e garantir oportunidades periódicas de recomeço para os menos favorecidos. Essas instituições revelam uma compreensão profunda dos mecanismos que podem levar à injustiça social e propõem soluções que integram a dimensão espiritual com a realidade econômica.
A governança social como instrumento do desenvolvimento
Definindo a Governança Social Integrada
A governança social, no contexto deste estudo, refere-se à capacidade de uma sociedade de organizar-se de forma eficaz para promover o bem comum, integrando os valores espirituais com as necessidades práticas do desenvolvimento econômico. Não se trata apenas de estruturas governamentais, mas de toda a rede de instituições, normas e práticas que orientam a vida coletiva.
Os Pilares da Governança Social Eficaz
Subsidiariedade Ativa: Baseado no princípio católico da subsidiariedade, este pilar reconhece que as decisões devem ser tomadas no nível mais próximo possível das pessoas afetadas, mas com o apoio necessário dos níveis superiores quando a capacidade local é insuficiente. Na prática econômica, isso significa valorizar a iniciativa local e empresarial, ao mesmo tempo em que se garante um marco regulatório que protege os mais vulneráveis.
Solidariedade Estrutural: A governança social eficaz institucionaliza a solidariedade, não deixando-a apenas à boa vontade individual. Isso inclui sistemas tributários progressivos, políticas de redistribuição de renda e mecanismos de proteção social que garantem que o crescimento econômico beneficie toda a sociedade.
Participação Democrática Qualificada: A governança social integrada promove não apenas a participação formal nos processos decisórios, mas uma participação qualificada, onde os cidadãos são educados nos valores espirituais e nos princípios éticos que devem orientar as decisões coletivas.
A Integração da Espiritualidade na Governança
A governança social verdadeiramente eficaz não pode ser puramente secular. A experiência histórica mostra que as sociedades que conseguiram manter altos níveis de coesão social e desenvolvimento sustentável foram aquelas que integraram valores espirituais profundos em suas estruturas de governança. Isso não significa teocracia, mas sim o reconhecimento de que os valores transcendentes oferecem uma base sólida para a cooperação social e a busca do bem comum.
Exemplos históricos de integração bem-sucedida
O Modelo de Desenvolvimento dos Países Nórdicos
Os países escandinavos oferecem um exemplo notável de como a integração de valores cristãos com estruturas de governança social eficazes pode produzir desenvolvimento econômico sustentável. A tradição protestante desses países, com sua ênfase na responsabilidade individual e na solidariedade comunitária, forneceu as bases culturais para o desenvolvimento do modelo de Estado de bem-estar social. Este modelo conseguiu combinar alta competitividade econômica com baixos níveis de desigualdade e forte coesão social.
A Noruega, por exemplo, com seu IDH de 0,970 [2], demonstra como a gestão responsável dos recursos naturais (petróleo), orientada por princípios de justiça intergeracional e bem comum, pode gerar prosperidade sustentável. O Fundo Soberano Norueguês, que investe os recursos petrolíferos para as futuras gerações, é um exemplo prático de como o direcionamento por valores transcendentes pode orientar políticas econômicas de longo prazo.
A Experiência Brasileira: Sucessos e Desafios
O Brasil oferece exemplos tanto de sucessos quanto de desafios na integração do direcionamento espiritual com a governança social. O Sistema Único de Saúde (SUS), implementado pela Constituição de 1988, reflete princípios cristãos de solidariedade e cuidado preferencial pelos mais necessitados. Reconhecido internacionalmente por seu caráter inclusivo e abrangente, o SUS demonstra como políticas públicas inspiradas em valores espirituais podem promover o desenvolvimento humano .
O Programa Bolsa Família, por sua vez, ilustra como a governança social pode operacionalizar o princípio da destinação universal dos bens. Ao condicionar a transferência de renda à frequência escolar e aos cuidados de saúde, o programa não apenas aliviou a pobreza imediata, mas investiu no desenvolvimento das capacidades humanas das futuras gerações. Milhões de brasileiros saíram da linha de pobreza graças a essa iniciativa que integrou assistência social com desenvolvimento humano .
A Doutrina Social da Igreja como Framework Teórico
A Doutrina Social da Igreja Católica oferece um framework teórico robusto para compreender como o direcionamento divino pode orientar a governança social. Os cinco princípios fundamentais da DSI – Destinação Universal dos Bens, Subsidiariedade, Solidariedade, Bem Comum e Dignidade da Pessoa Humana – fornecem critérios claros para avaliar sistemas econômicos e políticas públicas .
O Princípio da Destinação Universal dos Bens estabelece que, embora a propriedade privada seja legítima, ela deve sempre servir ao bem comum. Isso implica que os proprietários de recursos econômicos têm responsabilidades sociais que transcendem seus interesses individuais.
O Princípio da Subsidiariedade orienta a distribuição de responsabilidades entre diferentes níveis de organização social, promovendo a iniciativa local enquanto garante o apoio necessário dos níveis superiores.
O Princípio da Solidariedade institucionaliza o cuidado mútuo, garantindo que o desenvolvimento econômico não deixe ninguém para trás.
A abordagem das capacidades: uma ponte entre espiritualidade e desenvolvimento
A teoria das capacidades de Amartya Sen oferece uma ponte importante entre os valores espirituais e a análise econômica moderna. Sen argumenta que o desenvolvimento deve ser avaliado não apenas pelo crescimento econômico, mas pela expansão das capacidades das pessoas de levar a vida que elas valorizam [5]. Esta abordagem ressoa profundamente com a compreensão cristã da dignidade humana e do desenvolvimento integral da pessoa.
As “efetivações” (functionings) de Sen – desde as mais básicas, como alimentar-se adequadamente e evitar a mortalidade precoce, até as mais complexas, como desenvolver o auto-respeito e participar da vida comunitária – correspondem à visão cristã do desenvolvimento humano como crescimento em todas as dimensões da pessoa: física, intelectual, moral e espiritual.
A capacidade, segundo Sen, “reflete a liberdade pessoal de escolher entre vários modos de viver” [5]. Esta ênfase na liberdade como desenvolvimento encontra eco na tradição cristã, que vê a liberdade verdadeira não como ausência de limites, mas como capacidade de escolher o bem e realizar o propósito para o qual fomos criados.
Desafios contemporâneos e oportunidades
A Globalização e a Necessidade de Governança Global
A globalização econômica criou desafios que transcendem as capacidades dos Estados nacionais individuais. Questões como mudanças climáticas, desigualdade global e instabilidade financeira requerem formas de governança que integrem o direcionamento espiritual com a ação coordenada em escala global. A tradição cristã, com sua visão universal da família humana, oferece recursos importantes para pensar essas questões.
Tecnologia e Dignidade Humana
O desenvolvimento tecnológico acelerado, especialmente na área da inteligência artificial e automação, levanta questões fundamentais sobre o futuro do trabalho e a dignidade humana. O direcionamento divino oferece critérios para avaliar essas tecnologias: elas promovem o desenvolvimento integral da pessoa humana? Servem ao bem comum? Respeitam a dignidade de todos os membros da sociedade?
A Crise Ecológica como Chamado à Conversão
A crise ambiental contemporânea pode ser vista como um chamado à conversão – uma oportunidade para repensar fundamentalmente nossa relação com a criação e nossos modelos de desenvolvimento. A encíclica “Laudato Si'” do Papa Francisco oferece uma visão integrada que conecta cuidado ambiental, justiça social e desenvolvimento econômico sustentável.
Conclusão: rumo a um desenvolvimento integral
A análise apresentada neste documento demonstra que o desenvolvimento econômico verdadeiramente sustentável e justo requer a integração harmoniosa do direcionamento divino com estruturas eficazes de governança social. Não se trata de impor uma visão religiosa particular, mas de reconhecer que os valores transcendentes oferecem recursos indispensáveis para orientar as sociedades humanas em direção ao bem comum.
O direcionamento divino fornece os princípios fundamentais – dignidade da pessoa humana, destinação universal dos bens, responsabilidade moral na gestão dos recursos – que devem orientar toda atividade econômica. A governança social, por sua vez, oferece os mecanismos práticos – instituições, políticas públicas, marcos regulatórios – através dos quais esses princípios podem ser implementados na vida concreta das sociedades.
Os exemplos históricos e contemporâneos analisados mostram que as sociedades que conseguiram integrar essas duas dimensões alcançaram níveis mais altos de desenvolvimento humano, maior coesão social e maior sustentabilidade ambiental. Por outro lado, as sociedades que negligenciaram uma dessas dimensões – seja o direcionamento espiritual, seja a governança social eficaz – enfrentaram crises de legitimidade, instabilidade social e desenvolvimento insustentável.
O desafio para as sociedades contemporâneas é desenvolver formas de governança que sejam simultaneamente eficazes na promoção do desenvolvimento econômico e fiéis aos valores espirituais que reconhecem a dignidade transcendente da pessoa humana. Este é um desafio que requer não apenas competência técnica, mas sabedoria espiritual – a capacidade de discernir, em cada situação concreta, quais caminhos conduzem ao verdadeiro desenvolvimento da família humana.
O futuro da humanidade depende, em grande medida, de nossa capacidade de integrar essas duas dimensões fundamentais da experiência humana: nossa abertura ao transcendente e nossa responsabilidade pela construção de sociedades justas e prósperas. Somente através dessa integração poderemos alcançar um desenvolvimento que seja verdadeiramente humano – um desenvolvimento que promova não apenas o crescimento econômico, mas o florescimento integral de todas as dimensões da pessoa e da comunidade humana.
*O texto é de livre pensamento do colunista*




