Beribazu batiza e gradua a nova geração

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Cultura
Por: José Salucci – Jornalista

Se transformou em um panteão, o Centro de Educação Física e Desportos (CEFD) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), na noite de ontem (02). Diante de uma energia quente, um axé vibrante que pulsava ao ritmo dos instrumentos de capoeira e de palmas compassadas, o chão, que habitualmente testemunha o suor do esporte, virou terreiro sagrado. Risos infantis ecoavam, misturando-se à musicalidade envolvente que anunciava o rito de passagem. Era a celebração do “Festival de Capoeira Beribazu ES”, uma noite dedicada ao batismo e à graduação dos pequenos capoeiristas, um total de 60.

Símbolos da liberdade. / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

Na roda, corpos miúdos se moviam com uma mistura de concentração e pura alegria. Ao redor, uma plateia de celulares em punho, onde pais e familiares, com os olhos marejados, buscavam o melhor ângulo para eternizar o momento sublime. Aquilo era mais do que uma troca de cordas. Era a inserção oficial de uma nova geração em um universo de cultura popular, um elo firmado com a ancestralidade brasileira. Uma festa que celebra um legado de 53 anos do Grupo Beribazu, um dos mais tradicionais do país.

Momento de registrar a família. /Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

Vozes da experiência

A importância do momento ecoava nas palavras de quem dedicou a vida à capoeira. Natural de Cristalândia, Tocantins, atualmente residindo em Brasília, José Luís Cirqueira Falcão, o Mestre Falcão, 65 anos, carrega no corpo e na alma cinco décadas de prática. Com a sabedoria de quem já levou a capoeira a mais de 30 países, ele observava a cena com um brilho nos olhos. “Primeiro, eu acho muito interessante que é uma valorização de uma prática na qual eu me reconheço. E quanto mais gente valorizar a capoeira, para mim, melhor”, afirma.

 

“Eu considero a Itália um país que a capoeira está muito bem desenvolvida, eles cultivam a arte da malandragem, da brincadeira, do jogo”, disse Me. Falcão. / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

Para ele, a arte vai além do jogo. “A capoeira alterou minha vida. É como se fosse uma megaterapia para os seus praticantes. Ela faz um bem danado para o espírito das pessoas”, reflete o mestre. “Ela mistura dimensões fundamentais da nossa vida numa mesma prática: o jogo, o canto, a luta, a brincadeira e a dança. A capoeira termina sendo uma grande contribuição para a humanidade. Não é à toa que se tornou Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em 2014”, conclui o integrante do Beribazu.

Essa ritualística de pertencimento é também a essência para o Mestre Abdi Ramos, cujo nome em aramaico significa “teu servo”. Corretor de seguros em Valparaíso de Goiás (GO), ele serve à capoeira no Grupo Beribazu desde a década de 1980. “Essa ritualística de um professor jogar com o aluno é extremamente importante”, pontua. “Hoje é comum ver uma criança de 3, 4, 5 anos começar, e daqui a pouco você a vê com 16, 18, 22 anos e ainda na capoeira. A pessoa é preparada para a roda do mundo.”

O protagonismo feminino na roda

Entre os pequenos, a presença marcante de meninas gingando com força e graça não passou despercebida. Para Mestra Princesa, Viviane Oliveira, 47 anos, vinda de Salvador (BA), a cena é um reflexo da realeza que a capoeira carrega em sua origem. “A capoeira vem de um povo que é, de fato, de reis e rainhas. Temos que pensar que são pessoas muito resistentes que mantiveram essa prática para que a gente chegasse até aqui no século XXI jogando”, diz a presidenta do Conselho Gestor da Salvaguarda da Capoeira da Bahia. “É um privilégio dessas crianças contribuírem para esse principado”, completa a capoeirista do Centro Cultural Gingado Sempre, do Me. Zambi.

A visão é compartilhada pela Contramestra Liara Bertasso, 41 anos, de Florianópolis (SC). Há 24 anos na capoeira, ela vê um movimento natural e poderoso. “As meninas vão vendo outras mulheres nesses lugares de referência e vão se enxergando enquanto possibilidades de estar ali também. É natural que isso aconteça a partir do momento em que mais mulheres se empoderem e peguem esses lugares de poder: tocar berimbau, cantar, jogar na roda”, disse a capoeirista do Grupo Angatu, Me. Diogo.

Contramestra Liara no ritual de batismo, graduando a aluna com a corda azul, primeiro grau de cordas do Beribazu. / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

As mãos que trabalham além da roda de capoeira 

Muitas daquelas crianças são frutos de um trabalho diário, meticuloso, que transforma a capoeira em ferramenta pedagógica. À frente desse labor está o Mestre Thiago Melado, um educador físico que se tornou membro do Beribazu em 2000 e, desde 2006, semeia a capoeira no “Projeto Interação”, na Escola São Bernardo, em Jardim Camburi. O projeto, que caminha para seu 20º ano, é a prova viva do poder da arte.

Mestre Thiago Melado no movimento da bananeira e aluna na tesoura, a arte da capoeira unindo gerações. / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

“Trabalhamos a capoeira em seus vários aspectos, de forma integral”, explica Mestre Melado, cuja paixão transborda em cada palavra. Ele detalha como a prática vai além do físico. “Além das vivências de força, agilidade, equilíbrio e coordenação motora, trabalhamos a disciplina, o respeito, a cultura e a história do seu povo.” A voz do mestre ganha um tom professoral ao falar dos benefícios mais profundos: “Desenvolvemos a autoestima e a confiança, principalmente para as crianças. O ritmo, o canto… esse espírito de pertencimento, de fazer parte de uma cultura, essa identidade é muito importante”.

Seu braço direito nesse projeto é Renato Jandoso, 28 anos, estagiário do Grupo Beribazu. Com 18 anos de capoeira, oito deles no Beribazu, Renato encontrou no ensino infantil sua verdadeira vocação. “O trabalho com as crianças é muito gratificante porque é onde a capoeira se estrutura, se dá continuidade e se mantém viva”, afirma com convicção. Para ele, a docência é mais que uma profissão. “As crianças são a luz do meu trabalho. É o motivo de hoje eu acordar cedo, é o motivo de ir dormir tarde. E eu acredito que elas também sejam essa luz na capoeira.”

Primeiro mestre de Renato foi o Me. Bininha, do Grupo Quilombo do Queimado. Atualmente, o Me. Melado é a referência direta do estagiário do Beribazu, além do Me. Fábio Loureiro. / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

Mestre Melado complementa, ressaltando a comunicação não verbal que a arte ensina. “O praticante fala com o corpo”, diz ele, “além da oralidade”. Esse diálogo corporal, essa expressão que floresce na roda, é o que edifica cidadãos mais conscientes e seguros.

Brincadeira de capoeira, como é bom! / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

A capoeira unindo pais e filhos

Para os pais, a noite era a colheita de uma semente de confiança. Lorena Suave Lopes, 37, advogada, assistia ao filho Antônio, de 7 anos, com o coração derretido. “Para ele tem sido maravilhoso”, conta. Diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA), Antônio floresceu com a capoeira. “Ele não tinha muita interação antes. Desenvolveu muito por conta dessa atividade. Foi lindo e emocionante vê-lo hoje jogando, interagindo com os amigos, com o professor. Eu só tenho a agradecer ao projeto do Me. Thiago.”

O sentimento de gratidão se espalhava. Em uma mensagem enviada aos professores, Manoela Soares, mãe de Ana Cecília, escreveu: “Sentimos imensa admiração pelo trabalho que vocês realizam: sempre com tanto carinho, respeito, sensibilidade e paciência. É nítido como elas os admiram e como estão cada vez melhores. Para nós, assistir a esse processo é sempre encantador.”

No centro da foto, Ana Cecília, acompanhada por uma coleguinha e por sua mãe Manoela Soares. / Foto: Arquivo Pessoal. Clique na imagem!

Vinicius Augusto M. de O. Neves, pai de Liz e Betina, descreveu a troca de cordas com poesia: “É um abraço apertado na alma, uma melodia que ressoa no coração de pai. Cada fio daquelas cordas não tece apenas uma nova etapa na capoeira; ele emaranha as lições de vida que cada gingado, cada esquiva, cada melodia do berimbau vai esculpindo em seus pequenos seres.”

Ao final da noite, enquanto as últimas palmas soavam, ficava a certeza. O “Festival de Capoeira Beribazu” não foi apenas um evento. Foi a celebração da vida que se renova, da cultura que resiste e da comunidade que se fortalece no toque do berimbau, no sorriso de uma criança e na ginga que, passo a passo, semeia um futuro de mais respeito, arte e humanidade.

Lis e Betina geradas pelo útero da capoeira. Sejam bem-vindas! / Foto: Arquivo Pessoal.

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