O capoeirista com pé firme

Em entrevista exclusiva ao Jornal Merkato, o professor Railan, filho de Mestre Macaco, fala sobre pressão, futuro, sua profissão como protético e a resistência da ACARBO em Santo Amaro. / Foto: Jornal Merkato.

Entrevista
Por: José Salucci – Jornalista

A cobertura especial “40 Anos ACARBO” do Jornal Merkato, diretamente de Santo Amaro da Purificação (BA), berço da capoeira, registra não apenas a história, mas as novas gerações que mantêm viva a chama da resistência cultural. A Associação de Capoeira Arte e Recreação Berimbau de Ouro (ACARBO) celebrou suas Bodas de Esmeralda em grande estilo. O evento “Berimbau Tocou”, realizado entre 3 e 7 de setembro, de 2025, movimentou a cidade e reuniu mestres e capoeiristas do Brasil e do mundo.

No centro dessa organização, encontramos um perfil que simboliza a fusão entre tradição e modernidade: Jefferson Railan de Santos Neves, 26 anos, natural de Santo Amaro, que ocupa a cadeira de professor de capoeira na ACARBO, revelou maturidade durante a entrevista.

Filho do lendário Mestre Macaco e, também de mãe mestra, Railan foi “gerado no útero da capoeira”. Hoje, ele se divide entre a paixão pela arte, ajudando a organizar os eventos da ACARBO, e sua profissão como protético dentário no Mato Grosso do Sul. Com uma filosofia de “pé no chão”, ele encara a pressão de ser herdeiro de um grande mestre não como um fardo, mas como um motor para “fazer a coisa certa”.

Nesta entrevista, Railan fala sobre seu “sonho prático”, a importância da família e o segredo para os 40 anos de resistência da ACARBO. Leia!

1 – Professor Railan, você é filho do Mestre Macaco. Como é ter seu pai como seu mestre dentro da ACARBO?

Para mim é gratificante fazer essa fala, primeiro por fazer parte desta escola. Eu tenho a minha vida nesta escola. Nascer nesse círculo capoerístico e cultural, na minha cidade, que é um celeiro de bambas, que transborda cultura a todo momento, é muito gratificante. E, ter meu pai como mestre e minha mãe também sendo mestra, é uma honra.

Hoje eu faço o que posso para ajudar a organizar o evento junto com o mestre, para oferecer o melhor para a nossa capoeira, nosso povo e nossa gente que sempre vem nos prestigiar. Eu chamo todos de família.

2 – Você mencionou que sua vida está na escola ACARBO. Como foi esse início?

Eu, literalmente nasci na capoeira. Já nasci dentro da escola, desde a barriga da minha mãe. Minha mãe jogava capoeira comigo na barriga até os nove meses (risos).

“Para mim é gratificante fazer parte desta escola […] nascer nesse círculo cultural”, afirma o Professor Railan. / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

3 – Essa vivência te levou longe. A capoeira já te abriu portas internacionais?

Sim. Graças a Deus, à capoeira e ao meu mestre, que me levou, já saí do país duas vezes. Já fui à França, Israel, Itália, Grécia e Polônia. Inúmeros países com a capoeira e com a cultura. Isso é acreditar: acreditar no seu potencial, na capoeira e naquele que está te instruindo. O resultado vem através do que você absorve e aprende.

4 – Falando deste evento de 40 anos, qual foi o foco principal da celebração?

Este ano nós quisemos focar muito nos mestres da escola, aqueles que nasceram na ACARBO. Por mais que hoje eles já tenham seus próprios trabalhos — o que é importante, pois o objetivo da capoeira é expandir —, era fundamental trazê-los. Essas pessoas fazem parte da construção da nossa escola. Valorizar quem é de casa, quem é aluno do nosso mestre, é de suma importância. Isso sim é família.

5 – Sendo filho de uma figura tão ilustre como o Mestre Macaco, você sente muita pressão ou cobrança para seguir os passos dele?

A cobrança ela sempre existe, sim. A maioria das vezes por ser filho do Mestre Macaco. Mas a minha dedicação não é só por isso; é porque eu sou capoeira. A gente começa a crescer e ter o entendimento que precisa fazer pela capoeira, pela minha escola e pelo meu mestre.

A cobrança das pessoas é maior? Sim, é verdade. Então a dedicação tem que ser em dobro. Você tem que fazer as coisas da melhor forma porque está sempre sendo observado. Mas não faço por esse receio; faço porque o certo é fazer a coisa certa. Eu quero seguir o caminho com a capoeira dentro das possibilidades, do que é possível fazer dentro da realidade, e sempre com o pé no chão.

6 – A ACARBO chega aos 40 anos, o que é raro para qualquer grupo cultural no Brasil. Na sua visão, qual é o segredo dessa longevidade e resistência?

Primeiro, porque Deus é verdadeiramente bom. Segundo, porque nós temos um mentor, o Mestre Macaco, que é um cara extraordinário, sabe administrar de uma forma inexplicável. Isso é um ponto positivo crucial. Além disso, é resistência, força, resiliência e humildade, porque o mestre é um cara humilde. Isso mostra que, por mais que ele seja o mais velho na capoeira dentro da escola, ele sabe ouvir e sabe como dirigir as coisas.

É preciso acreditar no seu potencial. O primeiro passo é você que dá, Deus já nos deu a vida e a força. É labuta. Não é fácil, mas também não é impossível. Diversidades sempre existiram, mas olhe o resultado do que o mestre veio plantando cada dia. Isso aqui é o resultado do que o mestre é.

Gerido no ventre da capoeira, na roda da capoeira, no meio dos mestres. / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

7 – Olhando para o futuro, como o Railan se enxerga dentro da capoeira? Mais como organizador, professor, ou um capoeirista focado no jogo?

Eu chamo de “sonho prático”, porque é algo que eu já estou vivendo. Já faz quatro anos que ajudo o mestre nessa construção do evento, buscando sempre uma melhora. Então, me vejo fazendo eventos com o mestre, viajando com ele, levando a nossa cultura e conscientizando o ser humano e o capoeirista sobre a necessidade de ser humilde. A fala que eu trouxe: pé no chão, realidade. Isso pode, isso não pode. Se eu posso, vou fazer muito bem feito para valer a pena.

8 – Você mencionou a importância da “realidade”. Muitos não sabem, mas você tem outra profissão. Qual é?

Eu não vivo da capoeira, mas vivo para a capoeira. Eu sou protético, estou cursando e terminando minha formação em prótese dentária. É a área que eu atuo no mercado hoje.

9 – E como você concilia essa profissão morando em Naviraí, no Mato Grosso do Sul, longe do berço da ACARBO?

A capoeira está sempre interligada. Hoje sou casado, e a pessoa com quem sou casado, a Paulinha, é profissional de capoeira. Eu a conheci através da capoeira e foi através dela que entrei na área da prótese. Hoje moramos e trabalhamos juntos lá em Naviraí. E a capoeira está lá comigo, temos um trabalho com cerca de 22 a 25 alunos. Eu quero os dois: quero a prótese e quero a capoeira. Meu trabalho profissional é o que me mantém de pé, e eu valorizo isso, e a capoeira não me empata.

No sábado (06), o ponto de cultura “Lyra dos Artistas” recebeu o dia da formatura, celebração de um capoeirista que recebe o cordel para ascensão a título de mestre. / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

10 – Além de tudo, soubemos que você é compositor. Há uma música sua que está se destacando, “Sou preto, sou suspeito”. Como ela surgiu?

Sim, eu tenho música autoral. Essa música eu criei porque vi uma camisa de um amigo que dizia: “Sou preto, sou suspeito”. Aquilo ficou na minha cabeça. É uma realidade da vida. O refrão é um toque de Angola, cadenciado, que diz: “Será, se sou preto sou suspeito? / Será, se sou preto matador? / Será que é por causa das origens? / Ou será que é por causa da minha cor? Será?”. É uma letra que fala dessa realidade, de ser visto como suspeito ao dobrar uma esquina, ou como matador se alguém morre. É uma reflexão.

11 – Para finalizar, você define seu estilo como “Angola” ou “Regional”? O que é a “capoeira de Santo Amaro” que você representa?

Eu sou a capoeira de Santo Amaro, irmão (risos). É a capoeira que vem dos antigos, de Besouro. A gente joga capoeira. Se é Angola, a gente joga; se é Regional, a gente joga também. A gente é capoeirista. Eu acredito que cada um tem sua filosofia de trabalho, mas é importante nos potencializarmos e aprender um pouco de cada coisa. Conhecimento nunca é demais, é necessário. Eu sou uma pessoa que gosta de agregar, de aprender. Se eu gosto de tocar berimbau, por que vou ficar de fora se o toque é diferente? Quero buscar, entender e, se puder, participar e contribuir com a energia.

O “sonho prático” de Railan Neves: “Me vejo levando a capoeira da forma certa, conscientizando o ser humano e o capoeirista que precisa saber ser humilde.” / Foto: Jornal Merkato. Clique na imagem!

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