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A série “Capoeira Capixaba: relatos e vivências” apresenta uma princesa na origem de seu nome. Como em toda história de princesa existe o príncipe, mas esta que você irá conhecer, é princesa independente e tem como seu reinado, a capoeira.
O nome Sabrina, no Anglo-Saxão, significa “princesa”, no Oriente Médio tem a forma de “cactus espinhoso”. Em francês, teria o significado de “como o sabre”, que é uma espécie de espada. Já no latim, significaria “a que é da fronteira”. A partir do árabe, o nome ainda poderia significar “paciência”.
Bem, a capoeirista que vem aí harmoniza todos esses significados em seu trajeto de vida e personalidade. É princesa, aquela que luta pelo reino da capoeira e defende seus súditos (alunos/as). É um cactus espinhoso, porque é mulher de enfrentamento e luta. Também tem a valentia de ser espada, corta o mal do machismo na capoeira. Para o significado de fronteira, posso considerá-la uma mulher que já rompeu fronteiras geográficas e ideológicas. Suíça, País de Gales, Inglaterra e diversos estados do Brasil, já receberam a princesa da capoeira. Nessas viagens, a soberana representou o governo das mulheres na capoeira, quebrando paradigmas masculinos.
E o que dizer da paciência? Possuir personalidade forte não significa ser impaciente, muito pelo contrário. A capoeirista exerceu a paciência durante a caminhada de graduação, de Contramestra e foi coroada à Mestra, com muita disciplina, trabalho, responsabilidade, ética e paciência pela comunidade do Grupo Beribazu, seu castelo.
Entra na roda, leitor! O berimbau tocou e chamou essa princesinha, soberana na capoeira capixaba. Ser princesinha não significa ser frágil, o título, respeitoso e carinhoso, reflete a dimensão de que um dia Sabrina Abade foi criança, uma menina dedica ao bodyboard, agora, mulher, se formou princesa, conotação de soberania, mulher que governa com mestria o seu chamado de ensinar um símbolo da cultura brasileira: a capoeira.
1 – Mestra Sabrina, compartilha um pouco da sua infância, da sua personalidade, suas paixões e curiosidades ao seu respeito.
Meu nome é Sabrina Abade. Nasci em 15 de fevereiro de 1978. Sou natural de Vitória – ES. Na infância, morei em Serra Dourada II, na Rua Xingú, nº 75; a gente até hoje tem essa casa. Eu tive uma infância muito feliz, que foi acompanhada de perto pela minha mãe… O meu pai faleceu, eu tinha cinco anos de idade, mas tive uma infância muito proveitosa.
Aos nove anos comecei a surfar. O primeiro esporte que me dediquei foi bodyboard. Eu fui duas vezes vice-campeã Estadual… E sobre a minha personalidade, sempre tive uma personalidade forte, sempre fui do enfrentamento. Uma das minhas características é a disciplina. Eu sou muito focada no que eu quero.
Também sou remadora de canoa havaiana. Remo há 12 anos e também sou competidora. Gosto muito de competir! Já competi em vários Campeonatos Brasileiros e Estaduais. Já fui representar o Brasil no Campeonato Mundial de Canoa Havaiana, no Tahiti, em 2018. Eu sou muito do esporte. Eu pratico musculação e corrida regularmente. Tudo que envolve esporte, eu tô bem disposta para fazer!
E algumas curiosidades sobre mim é que mentira, falsidade, fofoca, me irritam. Também não gosto de pessoa preguiçosa. Eu sou muito disposta. Tenho muita energia. Uma curiosidade dentro do aspecto religioso, me identifico muito com o Candomblé, a Umbanda, com as práticas espíritas. E eu já comungo do ayahuasca, há 16 anos que eu já tomo o chá e participo do ritual da ayahuasca e me faz muito bem.
2 – No meio dessas curiosidades, paixões e personalidade tem espaço para a capoeira. Me conta como ela começou em sua vida.
Entrei na capoeira ainda surfando. Acabei parando de surfar porque eu comecei a me dedicar muito à capoeira. Comecei a praticar a capoeira através da minha irmã. Ela passou na Ufes, e aí descobriu a capoeira, lá. Começou a fazer, e eu, como irmã mais nova, fui atrás. Comecei a capoeira no Grupo Beribazu. E lá fiquei, nunca mais saí.
Em 1994, fui convidada pra participar do Campeonato Estadual, o Me. Fábio me indicou e me disse se eu passasse no Estadual iria representar o Espírito Santo no Campeonato Brasileiro, em Recife. Assim fiz. Participei do Estadual, ganhei na minha categoria e fui representar o ES no Campeonato Brasileiro.
À época, eu tinha 16 anos; andei de avião pela primeira vez. Fiquei dois meses treinando com o Me. Luiz Paulo, que era o técnico da Seleção Capixaba. E, lá, em Recife, eu tive a oportunidade de conhecer mestres como: João Pequeno, Me. Ezequiel, Me. Paulo dos Anjos, Me. Itapuã, Me. Gigante. Era muito mestre, eu não tinha noção da importância daquele momento.
Eu ganhei o campeonato Brasileiro, em 1994, na categoria individual; trouxe a medalha de ouro para o Espírito Santo. Quem me entregou essa medalha foi o Me. João Pequeno. Esse campeonato foi um divisor de águas da capoeira na minha vida. Quando eu voltei pro Espírito Santo, com essa medalha, todo mundo da capoeira me recebeu de uma forma muito festiva. Eu falei: Caraca, eu quero a capoeira pra mim, acho que posso ficar boa nisso! Foi importantíssimo pra mim esse momento.
Aí me dediquei a capoeira com todas as minhas forças. Treinava capoeira cinco vezes por semana. O Me. Fábio começou a me treinar. Foi uma dedicação total à capoeira durante muitos anos, gosto muito de treinar. É minha paixão.
3 – Vamos falar do seu batismo no Grupo Beribazu, que aconteceu em 1993. A partir desse rito, o que foi transformado em sua mentalidade? E o Grupo Beribazu, o que ele representa para você?
À época, peguei a minha primeira corda. O batismo é aquele ritual onde a gente é apresentada pela comunidade da capoeira, oficialmente, onde você joga com outro Mestre, Contramestre e passa ser um aluno com uma graduação. O processo de batismo foi muito tranquilo, e pra mim foi importante, porque foi fruto de dedicação do que eu estava fazendo, regularmente, na prática da capoeira.
Com o batismo no Grupo Beribazu, eu passei a ter um outro olhar como graduada, de responsabilidade de instrumentação, da música, de estar presente em outros eventos.
À época, que eu me batizei, na década de 1990, a gente viajava muito para o interior do estado do Espírito Santo para fazer apresentação. A gente fazia muitas apresentações nas escolas na Grande Vitória, então era muita coisa envolvendo a capoeira.
Eu sou nascida e criada no Grupo Beribazu. Eu nunca tive outro grupo de capoeira. É um grupo que têm muitos desafios, muitos conflitos, mas que perpetua dentro de uma proposta ética, respeitosa, de valorização da cultura, de valorização da pessoa, de não violência, de não discriminação, então isso são valores que são importantes. Nos valores humanos, culturais, com certeza, o Grupo Beribazu é referência em todo o Brasil.
4 – Mestra, sua carreira de professora de capoeira tem início em 1997. O que a capoeira transformou sua vida e te proporcionou como professora?
A capoeira transformou minha vida total. Eu não sei o que seria da minha vida sem a capoeira. Eu entrei querendo ser uma capoeirista, querendo ser uma boa professora de capoeira. A capoeira me levou a outros países. Consegui ir seis vezes à Suíça ministrar aula. Também ministrei aula na Universidade de País de Gales, ministrei aula em Briston, na Inglaterra.
Já esse ano, fui à Argentina dar aula de capoeira, mas a experiência na Suíça me proporcionou um currículo vasto. Pude aprender outra língua… Eu dava aula em inglês… E com certeza, fez com que minha docência se qualificasse muito. A capoeira é o grande norte da minha vida. Eu vivi de capoeira durante 15 anos, mas hoje, eu não ganho dinheiro com a capoeira. Eu dou aula de capoeira, gratuitamente, na Ufes. Sou formada em Educação Física e o dinheiro que eu ganho com a capoeira são os cachês que eu recebo quando viajo, eu consigo ter uma boa quantidade de viagens pelo Brasil, ministrando cursos, palestras, fazendo a militância do feminismo dentro da capoeira. Fora isso, é a Educação Física escolar e o trabalho como Personal Trainer que garantem a minha sobrevivência.
5 – Ministrar a capoeira na Europa, que destaques você pontuaria?
Dar aula fora do Brasil é uma experiência incrível! É uma outra cultura, eu não acho que eles valorizam mais ou menos. Tudo que envolve atividade física eles se envolvem muito. A capoeira é muito chamativa, até por sua musicalidade.
Outra coisa é que a capoeira proporciona que eles aprendam uma outra língua, isso chama muito atenção na área de conhecimento deles, tanto no comportamento, na cultura, na afetividade, no social… São muitas habilidades e competências que a prática da capoeira proporciona a todos nós. Então chegar num país diferente e proporcionar essa variedade que a capoeira traz, é muito rico. Eles querem saber de tudo. É muito interessante a forma como eles se apresentam: atentos, ouvindo, executando. Você pode dar uma, duas, três, cinco horas de aula, que eles estão, ali, atentos para se apropriarem de novos conhecimentos, isso é cultural.
6 – Você iniciou, em 2007, um trabalho individual que visou a questão de gênero, por que razão?
Nessa minha caminhada, eu comecei a encontrar com outras mulheres pelo Brasil, e a gente trabalhando sobre gênero… a importância da mulher na capoeira e como essa mulher se encontra nesse ambiente da capoeira. Entender o que é feminismo, o que é empatia, o que é gênero, palavras que não estavam em nosso vocabulário foram extremamente importantes pra qualificar nossa estadia no ambiente da capoeira.
Aqui, a gente começa a perceber como as mulheres são invisibilizadas, como a gente sofre assédio, discriminação, como a gente é violentada, através de diferentes formas de violência. Eu começo a abrir os olhos, junto com outras mulheres maravilhosas que vamos encontrando no mundo da capoeira. Percebemos como o ambiente da capoeira é machista.
Eu não sou igual a homem, eu não jogo igual a homem, eu não toco igual a homem, eu não canto igual a homem, então eu preciso ser contemplada nas minhas necessidades enquanto mulher, porque todas as necessidades dos homens são contempladas na capoeira.
Essa luta é constante e difícil. Ela é cansativa. Mas eu não tenho a opção de não fazer, porque eu sou mulher. Estou na capoeira. Não vou sair da capoeira! É é o lugar que eu escolhi pra viver, então eu tenho o tempo todo que estar fazendo enfrentamento de coisas que deveriam ser naturais.
7 – Em 2009 você se torna Contramestra. O que você mais teve que lutar, que enfrentar para conseguir essa corda?
O processo de graduação de roxa, que é a corda do meu grupo de Contramestra, foi um processo dentro da estrutura machista. Eu me encaixava nessa estrutura até esse momento e ouvia que eu jogava igual homem. Isso perpetuou e ficava na minha cabeça. Mas depois que eu me tornei Contramestra, eu precisava de uma identidade que me identificasse dentro do meu gênero. Eu sou mulher! Eu quero jogar como mulher! Eu quero cantar e tocar como mulher! Eu quero que essa discussão venha mais à tona.
O processo de Contramestria foi muito rico pra mim porque a gente ganhou força no Brasil inteiro, muitos encontros de capoeira que passaram a refletir sobre a qualidade dessa mulher na capoeira. Foram nove anos aprendendo, discutindo, refletindo, fazendo enfrentamento.
8 – Em 04 de maio de 2018, você é consagrada à Mestra de Capoeira do Grupo Beribazu. Foram 26 anos de capoeira para chegar nessa graduação. O que é a mestria para você e como foi alcançar esse título?
Eu entendo a mestria como um compromisso que você assume diante da comunidade da capoeira. Eu assumi como mestra um compromisso cultural e social. A comunidade entende que eu sou detentora de um saber que não se esgota. É um saber que o tempo todo vai se ampliando, a partir das relações que a gente estabelece com a comunidade da capoeira, com os eventos, com os alunos, e com os enfrentamentos sociais.
Nós mestres e mestras assumimos esse compromisso. Então, eu entendo que para além do fazer a docência, o mestre, ou, a mestra devem ser multiplicadores dessa cultura, é um fazer diário.
Então a capoeira é coletiva, cooperativa. Ela é inclusiva. Soberba, ego, vaidade, violência, discriminação, não são referências para que o mestre possa seguir. Quanto mais graduado (a) eu fico, mais humilde. Eu preciso estar mais próximo da comunidade. É onde eu vou conseguir multiplicar esse saber, esse fazer cultural.
E aí, quando veio a mestria, foi muito natural, porque eu já estava no cenário nacional da capoeira.
A minha mestria foi mais tranquila do que a de Contramestra, porque estava muito mais formada dentro da minha militância, dentro do meu feminismo, eu já sabia quem eu era. Eu peguei essa corda vermelha com muita tranquilidade no meu coração, com muita certeza de que eu merecia, porque eu sei do meu papel como mulher dentro da capoeira.
9 – Qual a principal responsabilidade da Mestra na capoeira?
É justamente manter firme os enfrentamentos. Eu quero que as minhas alunas tenham menos enfretamento do que eu tive dentro do universo da capoeira. Então ações afirmativas, diálogos, reflexões, enfrentamentos precisam de serem feitos a todo momento.
A Mestra de capoeira tem uma responsabilidade muito grande porque ela consegue estar em espaços que outras mulheres não estão: o espaço do berimbau; o espaço da musicalidade; estar à mesa, junto com outros mestres de grande nome nacional; ter um momento de fala. É preciso desses espaços, ocupados por mulheres, para reflexões acerca do feminismo e, do machismo que ainda acontece. Então a gente já consegue ver a mulher chegando na mestria, isso é muito importante.
Se unir e se fortalecer e manter essa qualidade da nossa capoeira para que mais mulheres possam chegar a mais maestria, é responsabilidade de uma mestra, detentora desse conhecimento, desse saber.
10 – O coletivo “Movimento Dandara Viva” reflete o empoderamento da mulher na capoeira. Me conta sobre a origem do grupo, a formação e representatividade no Espírito Santo.
Em relação aos grupos femininos que a gente vai formando são importantes para discussões. A gente conversa desde tamanho de camisa até o espaço kids nos eventos de capoeira. Muitas mulheres são mães e vão para os eventos de capoeira e não conseguem participar, porque o espaço do evento não tem um lugar apropriado para deixar o filho. São várias as questões que a gente discute em eventos protagonizados por mulheres.
O Movimento Dandara é esse movimento. Formado por sete mulheres, mestras, de diferentes grupos, diferentes estados do Brasil.
O Dandara Viva aconteceu esse ano em Vitória, eu organizei. A gente teve a participação de 120 pessoas, é um número muito representativo e aqui a gente discutiu sobre assédio, sobre gênero, sobre como trabalhar a questão de gênero dentro da escola, dentro do seu grupo de capoeira. A gente trabalhou sobre a violência, sobre a musicalidade… Ainda temos muitas músicas de capoeira que são machistas, que falam que vão matar a mulher, que vão bater na mulher, que a mulher é interesseira, isso não pode mais acontecer, não cabe mais esse tipo de música dentro da capoeira… A gente precisa de fomentar esse tipo de discussão.
Com isso, o movimento Dandara é muito consolidado dentro do universo da capoeira. E tem crescido a cada edição. Aqui em Vitória foi realizado a quarta edição e a próxima será em 2025, no Rio de Janeiro. Estamos batendo muito na tecla de qualificar esse espaço com ações afirmativas.
11 – Deixe seu recado para as mulheres capoeiristas que almejam um lugar em que elas sonham. Seu conselho e palavra de motivação.
Estejam preparadas para o enfrentamento! Estejam preparadas pra quando chegar a hora! Saber se posicionar. Saber colocar suas ideias. Não permitir mais que músicas machistas sejam tocadas, não permitir que o assédio aconteça, não permitir que os estupros aconteçam, não permitir ser tocada sem permissão, não permitir à violência na roda de capoeira. Não mais abaixar a cabeça! A capoeira é linda! A capoeira agrega. A capoeira soma. Nos permite sermos livres e expressarmos a nossa cultura através do movimento, através da música. Manter essa liberdade, essa expressão viva, dentro das nossas condições e não deixando que a estrutura machista modifique a nossa forma.
Desse modo, mulheres, vamos fazer o enfrentamento unidas, com respeito e ética. A capoeira é a nossa ferramenta de enfrentamento ao machismo. E que os homens também venham com a gente fazer esse enfrentamento, que os homens se apropriem também dessa luta, que é uma luta em prol da equidade, da qualidade da capoeira em todos os ambientes.
A única luta que permite homens e mulheres lutarem em uma mesma roda, é a capoeira. As outras lutas separam masculino e feminino. Na capoeira, eu jogo com homem, com criança, com idoso, com adolescente e isso é muito rico. É muito diverso. Respeitar essa diversidade, é muito importante.
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