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Vadiação e brincadeira são outros nomes com que os negros designavam na Bahia o jogo da capoeira. Capoeira se luta, se joga, brinca, é algo que se faz entre amigos ou companheiros. (Muniz Sodré).
Dando sequência a série Capoeira Capixaba: relatos e vivências, o texto citado acima já indica o que vem por aí. Essa semana o conteúdo capoeira me exigiu um bocado de ginga, de pesquisa, de treinamento. Comecei nessa terça-feira (12), a praticar, pela primeira vez, a brincadeira, no grupo Brasil das Gerais, de Belo Horizonte, representado no município de Serra pelo Me. Nikimba.
No dia anterior, fui à Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), entrevistar o professor de Educação Física, Fábio Luiz Loureiro, 57, da cadeira de Lutas, e também Me. de Capoeira do Grupo Beribazu, sede em Brasília, criado em 1972. O entrevistado me recebeu com louvor!
Gente, tô encantado com a circularidade que a capoeira tem em todos os sentidos de seus elementos culturais! E ter entrevistado uma personalidade participativa da capoeira capixaba e do mundo, foi muito AXÉ!
Ele é um humilde mestre; simples de coração; complexo no conhecimento, tanto acadêmico, quanto no popular. Sabe verticalizar os saberes e direcionar os alunos (as). Me deu conselhos para que eu não publicasse certas coisas. Durante as quase três horas de entrevista, em sua sala, me mostrou diversas literaturas da capoeira; acumulei nesse papo alguns segredos, e tesouros, os quais ele me pediu para que não fosse publicado: capoeira tem história, viu!
Fiz muitas perguntas filosóficas, pedagógicas, históricas, culturais, enfim. Ele me disse algo com risadas: “Salucci, essa eu quero que você publique. Você é danado!”, disse o professor.
Pronto, mestre, seu aluno cumpriu a tarefa. Entra na roda, leitor! O brinquedo mágico vai começar com o Me. Fábio.
1 – Mestre Fábio, se apresente ao leitor. Conte um pouco de sua história.
Eu nasci em Vitória, no Centro, no dia 25 de dezembro, às 18 horas, em 1965. Sou descendente de povos indígenas, venho de Aracruz-ES. Morei no bairro Bonfim em um barraco com minha família. Sou o 4º filho entre cinco irmãos. Meu pai foi motorista, só tinha a 4ª série, mas ele trabalhou como chouffer de um médico muito importante. Minha mãe era cozinheira, mas não estudou, eles me deram tudo. Já são falecidos. Me lembro que moramos em Bairro República. À época, era só lama. Ninguém queria morar nesse bairro. Tudo era longe. Não existia asfalto na redondeza. Pra irmos à Praia de Camburi passávamos pelo meio do mato. Mas meus pais ganharam a oportunidade de morar lá… O aluguel era muito barato, e a casa era boa, então pra gente era ‘a casa’.
2 – E seus estudos?
Meu pai e minha mãe trabalhavam na universidade. Minha mãe era cozinheira, como falei, se aposentou no Restaurante Universitário – RU – aqui na Ufes. Então eles falaram assim: “Não temos nada pra dar pra vocês”. Eles sabiam que isso daqui era bom pra gente, mas eles não tinham ideia do que era isso. E eles fizeram todos os filhos entrarem na Universidade. Meu pai, além da Ufes, ele foi ser coordenador de disciplina do Colégio Salesiano, e ele tinha bolsa. Eu me formei em Técnico em Edificações. Meu pai queria que eu fosse engenheiro, mas por causa da capoeira, prestei vestibular para Educação Física, por causa disso, meu pai nunca foi em uma apresentação minha, apenas na minha formatura de Mestre em Capoeira.
3 – E continuando o papo de família, em 1980 você entra na capoeira. Quem te convidou? O que te atraiu?
Eu tinha 15 anos de idade, já praticava karatê. Um dia fui à Feira dos Municípios, em 1979, ela acontecia no Álvares Cabral. E lá, já aconteciam as rodas de capoeira, feita pelo Me. Caio, Me. Luiz Paulo, Me. Capixaba, Me. Binha. Eu chego lá, olhei pra quilo e disse: Coisa feia, uma zona danada! E fui embora.
Em 1980, meu irmão foi fazer Economia. Conheceu o Carlos Henrique, que hoje é o meu mestre, que passou junto com ele em Economia. Aí ele disse: “Você vai fazer capoeira junto comigo”. Eu falei que não gostava. Aí, onde era a aula de capoeira? Aqui, no Centro de Educação Física. A capoeira começou em 1978, na Escola de Música (Fames), no Centro de Vitória. Depois veio pra cá (Ufes). Meu mestre era o Carlos Henrique e o mestre dele era o Odilon Vieira.
Então, eu entrei por influência do meu irmão, que fazia capoeira de rua, na década de 70… Um dia eu sentei emburrado, né? Meu mestre muito paciente falava assim:
– Ah, vamos fazer uma aula de experiência?
– Eu disse: Não quero.
O cara insistiu, eu fiz uma aula, nunca mais parei. Foi a paixão… Primeira aula no auditório do Centro de Educação Física, na Ufes. Aqui eu comecei, aqui eu me tornei professor, aqui eu ministro aula (risos).
4 – Sua família foi muito participativa em sua vida. Quer contar alguma curiosidade a mais?
Já falei na minha formatura de mestre, mas não oficialmente. Meu pai era motorista do reitor e ele nunca foi a favor da opressão (Regime Militar), sempre foi a favor dos alunos (as). Quando o Exército ia invadir o Diretório Acadêmico do CBM – Centro Biomédico de Medicina – quem avisava aos alunos para saírem; escaparem da prisão, porque eles resistiam à ditadura; era o meu pai. O Exército, dificilmente, conseguiu fazer uma surpresa no DA do CBM, só que ele me contou isso perto de sua morte. Ele me contou em um passeio de canoa, me ensinando a remar no rio Itaúnas… Ele tinha muito medo de contar essa história.
5 – Vamos seguir o papo com a capoeira. Que observação você propõe quando o assunto é formação dos mestres ou mestras na capoeira?
Depois de 40 anos me formei em mestre. Ano que vem eu vou formar quatro mestres. Não existe formar um mestre em curto espaço de tempo. Tem um estudioso que fala: “Você não consegue formar uma pessoa culta em um curto espaço de tempo”. Me apropriando de Dermeval Saviano, digo que não é capaz de se formar um mestre ou uma mestra, com a cultura da capoeira, em um curto espaço de tempo.
Um médico para fazer uma cirurgia em você, demora de 8 a 10 anos, para fazer uma boa cirurgia. Só que tem um problema, essa pessoa fica de 7 da manhã às 10 da noite, de segunda a sexta, e por vezes, sábado e domingo… Essa é a vida de um médico bem formado… Eu não tenho dificuldade em colocar essa formação em medicina, em pé de igualdade, em formação da capoeira. Pra mim, não tem diferença de tempo e de riqueza para a formação humana.
6 – Falando de hierarquia, você alcançou o máximo de um sistema humano, sendo aprovado para pegar a última corda do seu grupo de capoeira. Como indivíduo, o máximo não acaba. Me fala dessa beleza que há na capoeira de ser mestre, de chegar ao máximo para ser o menor.
Para ser mestre tem que entender que você não é mestre do seu grupo, você é mestre de um ofício imaterial reconhecido na humanidade. E se você olha pro seu umbigo essa prática cultural vai acabar. Ser mestre é deixar princípios. Eu tenho que passar o máximo de saber com as pessoas que tem contato comigo. Isso se chama princípios. O princípio do mestre e da mestra são princípios inegociáveis. Isso vai acabar quando eu partir, e eles vão fazer perpetuar a partir daquilo que eu deixei de bom.
Exemplificando esse alguns desses princípios: Na formatura dos mestres (as) vamos celebrar com feijoada e não com churrasco. O encontro será na praia, alguns irão levar as comidas, outros os instrumentos, isso é preservar a identidade dos princípios.
7 – Um grande desafio para os mestres e professores, em geral, incluindo outros conhecimentos e saberes, é a pós-modernidade, sendo uma sociedade líquida em seus hábitos, costumes e cultura, um conceito que deteriora os princípios da capoeira, fale sobre isso.
Eu não sou estudioso de Zygmunt Bauman, mas tive o prazer de estar na Polônia, pelo menos tirar uma foto de onde ele trabalhava… Mas a sociedade de hoje é de regras e não de princípios. A sociedade é líquida. Quando você fala dessa relação humana desejável e saudável, é o que vem na cultura afro e brasileira que persiste: o sorriso, a celebração do encontro, a cultura da festa, a comida que une… a delícia de ver o outro saboreando. Essas nuances estão sumindo. Essas são as riquezas que a capoeira traz. Isso tem que ser inegociável.
Umas das competências pra se viver na pós-modernidade e na modernidade é ser crítico. Esse mundo líquido, volúvel, é muito difícil pra cultura. Aí que entra o conceito de convivência ou de enfrentamento à pós-modernidade: a resistência.
Tem um autor chamado Fernando Azevedo… Ele fala que a cultura têm três palavrinhas nesse conceito de cultura, nessa relação: o que você pode preservar, conservar e progredir.
8 – Então falando de cultura, vamos exemplificar com algo tangível: a competição. É uma forma moderna de profissionalizar os esportes. No ambiente da capoeira há uma polêmica que envolve discordância entre os grupos: os que são a favor da competição e os que são contra. Qual é sua visão?
Sempre que você lidar com o novo tem que se perguntar: Para a capoeira isso é bom? É o conceito de cultura de preservar, conservar e desenvolver. Acertar o alvo é civilizador. Eu tenho que acertar o alvo pra ganhar a competição. Tem que se fazer a pergunta do enfrentamento: O que a capoeira vai ganhar com isso?
Eu acho que tem que ter a competição dentro da capoeira, mas a partir do seu processo histórico. A capoeira vem de uma cooperação de competências e saberes para sua resistência. Os seres humanos escravizados eles tinham cooperação mútuas entre eles para resistirem. Botar os capoeiristas, hoje, para competir entre eles, tem que ter essa cooperação de competências: saberes históricos da capoeira; dos saberes ritualísticos; dos saberes da musicalidade; culturais; dos saberes ritualísticos do ponto de vista da roda de capoeira, que é um patrimônio imaterial da humanidade; como colocar isso numa competição? A capoeira não pode se resumir a uma medalha.
9 – Continue comentando sobre as desavenças e controvérsias que há na capoeira em relação a competição.
Não podemos trazer os momentos históricos numa avaliação nostálgico, não podemos fazer isso. Uma avaliação sem critério de trazer de lá pra cá. A ideia de se defender a competição porque a capoeira tem uma história de luta na guerra… Penso a esgrima enfiando uma espada no outro porque veio da guerra. A capoeira participou de guerras. Ainda não havia armas de fogo, se lutava com facas, porretes. Lutava para se defender dos capangas, dos senhores de engenho, mas não pode ser reduzido a esse fenômeno.
Em 1996, eu assinei um modelo de competição de ter uma ritualística… a oralidade dos mestres… assinei um documento para o MEC. Pode ter disputa, mas não ter degradação do outro, igual o modelo da guerra, uma disputa só pelo poder. Como eu já disse: A capoeira não pode se resumir a uma medalha.
10 – Vamos sair da competição e entrar na área pedagógica. Você lançou um fascículo chamado “Oficina de Docência de Capoeira”, em 2013. Me fala desse trabalho.
Esse trabalho é fruto do primeiro DVD de Capoeira Escolar do mundo em três línguas: francês, italiano e alemão. Eu passei cinco anos na Europa para produzir esse DVD, na Suíça. Eu recebi um convite de um professor de luta, suíço, pra ir pra lá, queria aprender capoeira. Ele veio fazer aula comigo, em 2000. Eu cheguei a falar “esse cara vai me levar nada”. Ele mandou a passagem para eu levar uma vivência pra lá por 4 horas, acabei ficando 1 mês e meio, quase perdi meus empregos aqui (risos).
Eu recebi convite pra dar aulas nas faculdades, eu ia nas férias de julho, janeiro… Levei um grupo com quatro pessoas: dois alunos e duas alunas brasileiros… Filmamos… Preparamos um roteiro. Foi um DVD pensado para professores de educação física escolar pra entrar nas escolas, esse foi o objetivo de difusão pra capoeira, que trata de um exercício para educação física.
11 – Qual é o método pedagógico que você utiliza na capoeira?
Eu sigo um autor chamado José Luiz Sirqueira Falcão. Ele trabalha com complexo temático da capoeira. A capoeira como labirinto, como múltiplas possibilidades de ensino.
Se você pegar meu plano de aula vai encontrar: desligando da realidade que o cerca pra abrir as múltiplas possibilidades (a arte do confronto); depois você brinca de capoeira (o brinquedo mágico); depois você condiciona seu corpo, ele precisa de ter uma estrutura forte como os africanos. Também reflexão com a realidade; jogar capoeira com dois ou três; de ritualística; da roda e também você precisa de avaliação. Esse é um labirinto que você pode ensinar as múltiplas formas da capoeira.
12 – Me fale de alguns princípios pedagógicos na capoeira.
A formação mais antiga do plano coletivo na humanidade: a circularidade. Nós temos isso como bem imaterial da humanidade. E toda vez que a gente chega pra começar uma aula, por que a gente põe em coluna e tira da roda? Isso é um princípio que a gente não pode negociar. Você pode trabalhar em coluna, eu também trabalho, é interessante, porque é uma forma de aprendizagem. Mas temos que priorizar a formação circular.
Outro princípio: o saber experiencial. É o que faz perpetuar a prática cultural e tem o saber acadêmico, que faz que a pesquisa perpetue na academia… Os mestres me odeiam por isso que vou falar agora… O aluno chega e quer tocar berimbau. Por que o aluno só vai pegar o berimbau lá na frente? Entrega o gunga pro aluno e fala: Você tá pegando o berimbau do mestre. Se é um saber da experiência, a experiência é temporal e não lá na frente.
E temos a avaliação: o ser humano escravizado ele sempre foi repreendido. Sempre teve ajustes de contas de sua atitude com o senhor. Os senhores de engenho sempre faziam ajustes de contas. A avaliação na capoeira não pode ser um ajuste de contas. Tem que ser um instrumento efetivo de aprendizagem. Eu tenho que criar possibilidades de aprendizagem. Esses são alguns princípios.
13 – Qual seria o fator de maior relevância para a capoeira ingressar na escola pública como prática educativa?
Primeiro é necessário de falar que escola é lugar de resistência e luta. Não é lugar de acomodação. Partindo desse princípio, a escola tem tudo a ver com a história da capoeira, que é uma história de resistência, de luta, de preservação, de progresso da cultura afro-brasileira. Dito isso, a capoeira tem que estar nas escolas públicas por vários motivos.
Vou te falar um: a riqueza cultural da capoeira para a formação humana, em particular dos brasileiros e brasileiras, é inquestionável. É inquestionável! E esse inquestionável faz parte da arte do confronto e da provocação pra que as pessoas me chamem para falar porque que é inquestionável. Muito obrigado por tudo! (risos).
Contato com o Me. Fábio: [email protected]
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