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Por Sueli Valiato – professora de Língua Portuguesa e Literatura.
Toda vez que eu degusto esta trufa de sabor tão genuíno, abre-me uma janela de lembranças. Esse sabor doce meio amargo, me lembra as vivências de minha infância… Do tempo em que eu corria entre as fileiras dos cacaueiros, ajudando meus pais na lida diária. Encantava-me com as gigantescas sapucaias, que pareciam tocar o azul do céu. Eu girava em torno dos troncos delas, buscando atentamente seu coco cheio de deliciosas amêndoas.
A cada mordida que dou nesta trufa me conduz a longínquas lembranças… O cantar estridente do galo, que anunciava os primeiros raios do sol, juntava-se a música orquestrada pela natureza, inaugurando o novo dia. E assim, dia após dia, fui conhecendo com meus pais, o valor e a necessidade do trabalho.
Parece que ouço meu pai contando e recontando sobre o dia em que eu nasci… Deu-me nome de um santo guerreiro e desse padroeiro, tenho certeza que herdei a coragem! Fiz do conhecimento a minha espada; da fé, meu escudo; e da inteligência, o meu cavalo. E nas batalhas de minha vida, muitos dragões já foram por mim derrotados.
Lembro-me do frescor da sombra dos cacaueiros, que nos acolhia no descanso do almoço. Tempos difíceis foram esses, mas nunca tempos de lágrimas… Graças a minha mãe, que além de cultivar cacaueiros com maestria, também era mestra em cultivar alegria. Em meio aos cacaueiros, misturávamos o suor, o cansaço aos desafios que fazíamos: quem enchia primeiro o balaio; quem furava primeiro o talhão. Eu ainda pequenino, seguia minha mãe o dia inteiro. Ah… Eu era o companheiro de roça de mãe!
Quem me vê agora degustando esta deliciosa trufa com tanta leveza, não imagina o tanto que este menino do cacaueiro já trabalhou. Quantos desafios superou… Mas eu já disse que nos cacaueiros, era a sapucaia que me inspirava! Porque era para cima que eu olhava.
Quando o sol desaparecia no horizonte, rapidamente entre os cacaueiros a noite se fazia. Nossa! Parece que estou sentindo aquele cheirinho de banana frita, preparada por minha irmã, que de tão pequena que era, subia na borda do fogão para passar o café. Era o esperado lanchinho da tarde: banana frita, farinha e café… Depois eu ia jogar bola no terreiro e na sequência tomava um bom banho de rio. Lembro-me que no meu olhar de menino, aquele rio era gigante!
Recordo-me que após a janta, minha mãe que tinha mente criativa e sorriso fácil, sentava-se comigo e meus irmãos sob as tendas que fazíamos com as esteiras. E, iluminados com a luz do candeeiro, contava-nos lindas histórias. Suavizando em nós as dificuldades do dia a dia. Nesse momento, a nossa pequena sala se transformava num grande palco, numa verdadeira arena de risos. Era nessa brincadeira de contar histórias e imitar os personagens com tom de voz empostada, que sem conhecer o segredo das letras, que minha mãe nos apresentou a literatura, usando a pedagogia da vida, do amor e da alegria. É certo que ela ainda não sabe, que suas criativas histórias me prepararam para ingressar na escola.
Falando em escola, me lembrei do meu primeiro dia de aula. Eu estava tomado de enorme empolgação, foi quando me assustei com o fato de que eu não sabia escrever. E na inocência de criança reportei essa preocupação para minha mãe. Foi quando ela olhando em meus olhos, com ar de sabedoria tranquilizou-me dizendo: “É exatamente por isso que você vai para a escola!”
À noite, além das histórias criativas de minha mãe, eu animava ainda mais o momento, posando de Disk Jockey, rodando as tampas de panelas no chão e cantando Roberto Carlos: “Hoje eu tive um sonho que foi o mais bonito. Que eu sonhei em toda a minha vida. Sonhei que todo mundo vivia preocupado, tentando encontrar uma saída…” E de repente o sono ia aconchegando o meu cansaço de mais um dia vivido em meio aos cacaueiros. E a partir dessa hora, só o silêncio falava.
Enquanto saboreio esta deliciosa trufa, fico aqui pensando… Quantos meninos dos cacaueiros só tiveram a chance de conhecer do cacau o sabor amargo da amêndoa…
Lembro-me bem que a escola era longe, mas me colocava em contato com o que estava distante da minha realidade. Realidade de um menino dos cacaueiros. E foi na escola, com apoio de uma professora espetacular, que uni o que aprendi com meus pais e o que a escola ensinava, e iniciei a trajetória de menino dos cacaueiros, mas que se encantava mesmo com a exuberância das sapucaias.
Saibam… Que após degustar essa trufa, rapidamente o sabor dela já se desfez em meu paladar. Muito diferente dessas memórias, que remontam à época que eu era apenas um menino entre os cacaueiros. Elas acrescentam em mim e em minhas teorias traços de vivência, sensibilidade, sabedoria…
Mas entre tantas lembranças, esta me causa pesar: mesmo quebrando cacau todos os dias, o menino dos cacaueiros não conhecia o sabor que esta fina trufa tem, tampouco o prazer de a degustar…
*O texto é de livre pensamento da colunista*
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