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4 de dezembro de 2024

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Revirou lixo, agora ‘come livros’ e ensina o recomeço

(Imagem: Divulgação)

Invista no Jornal Merkato! – Pix: 47.964.551/0001-39


Entrevista
Por: José SalucciJornalista e diretor do Merkato.

Crescemos ouvindo que nunca é tarde para recomeçar. No entanto, por mais que essa ideia esteja enraizada em nós, recomeçar não é uma tarefa simples. Para recomeçar na vida é necessário olhar para trás, avaliar o que precisa de ser ajustado e, então, partir para o novo.

O Merkato entrevistou Gabriel Silva Araújo, um homem que personifica a força do recomeço. Como um legítimo professor, no tocante da palavra, nos ensina uma lição inspiradora sobre recomeços e felicidade.

Natural de Posto da Mata, distrito de Nova Viçosa, na Bahia, o Gabriel, 29 anos, é filho de uma gari e de um trabalhador autônomo. Ele teve uma infância simples, marcada por inúmeros desafios, e, aos 17 anos, decidiu buscar novas oportunidades na capital capixaba. Foi nesse mesmo ano que ingressou no curso de Direito, enfrentando as dificuldades de viver sozinho em uma cidade grande, sem a presença da família ou amigos.

Para se formar, Gabriel precisou de superar situações extremas, como revirar lixos em busca de sustento. Sua dor no estômago era alimentada pela fome, mas também pelo desejo insaciável de vencer na vida. Apesar das adversidades, ele concluiu o curso e construiu uma carreira sólida no Direito, trabalhando em escritórios renomados no Espírito Santo.

Quando alcançou o cargo de subgerente em uma autarquia do governo estadual, parecia estar no caminho certo para realizar todos os seus objetivos. Contudo, Gabriel se sentia infeliz. Foi nesse momento que ele decidiu revisitar um sonho de infância: a educação. Abandonou a carreira jurídica e, com coragem, tornou-se professor de História.

Em dias atuais, Gabriel leciona a disciplina de História, no ensino fundamental I e II, no Centro Educacional Castelo (CEC), uma escola particular que é referência em ensino, localizada no bairro Chácara Parreiral, Serra. Sua história de esforço e dedicação não apenas inspira, mas também mostra que, às vezes, é preciso de ter a coragem de recuar, avaliar o caminho e recomeçar para encontrar a verdadeira felicidade. Caros leitores, saiba mais um pouco de uma história linda, de esforço e dedicação.

1 – Gabriel, com tantos desafios enfrentados na educação, é comum vermos professores migrando para outras áreas. Por que você fez o caminho inverso?

O Direito ainda é um curso muito elitizado, e isso cria a percepção de que qualquer profissional na área será bem-sucedido. Embora eu tenha um carinho enorme pelo Direito, aprendi com a minha trajetória que, antes de ser um bom profissional, é preciso ser um bom ser humano.

Muitas vezes, as pessoas escolhem o curso que conseguem pagar ou para o qual passam no vestibular, mas isso nem sempre reflete o que realmente gostariam de fazer.

Eu gostava do Direito, mas, assim como viver é diferente de estar vivo, fazer o que se gosta é diferente de fazer o que se ama. E eu percebi que o meu amor verdadeiro estava na educação.

Foi essa falta de amor pelo que eu fazia que me mostrou a necessidade de buscar algo que me trouxesse felicidade, realização e propósito. A educação, apesar de não ter todo o glamour que muitas vezes associamos ao Direito, me oferece isso.

2 – Muitos veem o professor como alguém desvalorizado financeiramente. Como você enxerga essa questão?

É verdade que muitas pessoas ainda associam o operador do Direito à riqueza e o professor à pobreza. Mas, vindo diretamente do mercado jurídico, posso afirmar que essa visão nem sempre corresponde à realidade.

Atualmente, recebo um salário como professor que muitos colegas não conseguem alcançar no Direito. Grandes escritórios, por exemplo, oferecem salários bastante desvalorizados, e a competição nesse mercado é imensa.

O papel de um professor na sociedade é, sem dúvida, o mais importante. Afinal, todo profissional, independentemente da área, passou pelas mãos de um professor. Por isso, acredito que o salário dos professores deveria ser o mais alto.

3 – Em que momento você parou e pensou: ‘preciso mudar de área’?

Aos 23 anos, me tornei pai solo. Criar meu filho sozinho, especialmente após receber o diagnóstico de autismo, foi um desafio enorme, intensificado pela pandemia. Durante a quarentena, precisei ser um pouco de tudo para ele – inclusive professor. Foi nesse período, ao acompanhá-lo nas tarefas escolares e nas idas à escola, que comecei a me reconectar com meu passado.

Na infância, minhas brincadeiras favoritas eram de escolinha, e eu sempre assumia o papel de professor. Essa lembrança ressurgiu com força à medida que eu percebia que, apesar de todos os meus esforços, minha carreira no Direito não me trazia realização. Eu me cobrava, acreditando que bastava colocar mais amor no que fazia para as coisas funcionarem. Até que, um dia, percebi que não precisava insistir no que não dava certo. Eu poderia investir meu amor e energia em algo que sempre sonhei, mas nunca me permiti realizar.

Foi assim que decidi cursar licenciatura. Primeiro Sociologia, depois, simultaneamente, História e Pedagogia. Estudei o mercado da educação com cuidado e planejei uma transição segura.

Essa mudança foi uma das decisões mais importantes e gratificantes da minha vida.

Gabriel com seu filho Murilo. Pai e filho, educação incondicional. / Foto: Arquivo Pessoal.

 

4 – 2024 é o seu segundo ano como professor. Durante esse período letivo, qual foi a maior experiência que você vivenciou na educação?

Sem dúvida, a mais marcante foi durante um período muito difícil na minha vida. Minha mãe do coração, Dona Isaura, uma senhorinha de 94 anos que me acolheu quando cheguei aqui e sempre fez de tudo para me ajudar, precisou ser hospitalizada. Ela enfrentava complicações de saúde e ficou mais de 10 dias internada.

Nesse tempo, eu passava as noites com ela no hospital, porque durante o dia precisava estar na escola dando aula. Minha rotina era exaustiva: saía da escola direto para o hospital e, depois, ia para casa para tentar descansar um pouco antes de recomeçar tudo. Tinha dias em que eu precisava escolher entre almoçar ou dormir.

Foi um momento muito difícil, mas as aulas foram meu refúgio. Eu levava provas para corrigir no hospital, iluminava os papéis com a lanterna do celular enquanto cuidava dela, e, quando chegava na escola, era como se todo o caos da minha vida ficasse para trás.

O que mais me marcou foi o carinho de um aluno do 5º ano. Até hoje, todas as vezes que chego para dar aula, ele me recebe com um sorriso enorme e um abraço. Mas, naquele período, aquele abraço era muito mais do que um gesto. Era o único abraço que eu recebia em dias tão difíceis, e isso me confortava profundamente.

Dona Isaura, felizmente, está bem hoje e se recuperou, mas a minha vida nunca mais será a mesma depois dessa experiência. O poder de um abraço me transformou, tanto como pai quanto como professor.

5 – Agora vamos entrar diretamente em assuntos teóricos da educação. O que é inovação em um currículo escolar? Como pensar um currículo efetivo e assertivo nas escolas?

A inovação no currículo escolar é essencial para acompanhar as transformações do mundo e preparar os alunos não só para as demandas acadêmicas, mas também para os desafios do cotidiano. Um currículo efetivo deve equilibrar o desenvolvimento de competências socioemocionais, pensamento crítico, cidadania e habilidades práticas, respeitando a individualidade de cada aluno.

Como professor de História, acredito na importância de conectar o ensino à realidade. Por isso, estou desenvolvendo um projeto para incluir, no Ensino Médio, uma disciplina eletiva sobre Direito Geral. A proposta visa oferecer conhecimentos práticos, como elaborar e interpretar contratos, entender termos jurídicos (como inciso, parágrafo e caput), e abordar temas relevantes como diferenças entre roubo e furto, crimes qualificados, redação de boletins de ocorrência e o funcionamento do sistema eleitoral.

Educação deve ser vida prática, e um currículo inovador perpassa por essa construção. Acredito que direito e cidadania devem ser aprendidos na escola!

6 – Quais são seus autores preferidos/inspiradores na Educação?

Entre os autores que me inspiram na educação, destaco o glorioso Paulo Freire, que com sua “Pedagogia do Oprimido” reforça a importância de um ensino libertador, capaz de formar cidadãos críticos e engajados na transformação

social. Também admiro Maria Montessori, pela sua visão de uma educação centrada no aluno, respeitando sua individualidade e promovendo autonomia.

No campo do ensino de História, me inspiro em Jacques Le Goff, pela forma como ele torna a História mais humana e acessível, conectando passado e presente.

Esses autores me ajudam a pensar em uma prática pedagógica que vá além da transmissão de conteúdos, promovendo diálogo, reflexão e o preparo dos alunos para os desafios da vida.

Formatura no curso de Sociologia. / Foto: Arquivo Pessoal.

7 – Falando em literaturas, cite livros na área da Educação que te marcaram, que contribuem para seu amadurecimento profissional?

Alguns livros que marcaram minha trajetória e contribuíram para o meu amadurecimento profissional são Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, que reforça a importância de um ensino que valorize a construção do conhecimento de forma humanizada e crítica; Como um Rio: Ensaios sobre Educação e Filosofia, de Rubem Alves, que me inspira a ver a educação como uma arte capaz de transformar vidas.

Durante a graduação, tive a honra de receber como presente da minha saudosa professora de Práticas Pedagógicas, Dra. Maria de Fátima Henriques, um livro extraordinário do Dr. João Wagner Martins, intitulado “O Corpo Masculino no Universo Feminino”. A obra aborda os desafios enfrentados pelos homens na educação infantil, um tema que me marcou profundamente.

8 – Gabriel, encerrando a entrevista. Qual conselho você daria para alguém que se sente infeliz no trabalho e pensa em mudar de carreira?

Tenha coragem! E, se tiver medo, vá com medo mesmo. Precisamos de ter responsabilidade afetiva conosco, porque ninguém deveria ser nossa maior prioridade além de nós mesmos. Infelizmente, passamos boa parte da vida tomando decisões com base na opinião dos outros – preocupados com como seremos vistos, o que vão pensar ou falar sobre nós.

Nessa busca de agradar ou de não frustrar as expectativas que colocam sobre nós, acabamos nos frustrando. E isso é um erro.

As expectativas dos outros pertencem a eles, não a nós. Não devemos carregar essa responsabilidade. Isso vale para todas as áreas da vida, mas especialmente para a profissional, porque passamos grande parte dos nossos dias trabalhando. Dedicar tantas horas da vida a algo que não nos faz felizes é cruel com a gente mesmo.


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